O cineasta Pedro Almodóvar com frequência busca no universo feminino inspiração para seus filmes. Desses mergulhos bastante profícuos, emergiram, ao longo de sua já longa carreira, obras notáveis, fundamentais em seu cinema, como Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), retrato subversivo da sociedade espanhola no período que sucedeu a ditadura de quase quatro décadas do general Francisco Franco (1892-1975), e Tudo sobre Minha Mãe (1999), no qual o diretor de certa maneira brinca com as convenções formais do melodrama, estabelecendo uma riquíssima discussão sobre identidade de gênero. Mulheres e transexuais compartilham uma tocante relação de sororidade, desencadeada pela perda trágica do filho da protagonista, vivida pela atriz argentina Cecilia Roth (de Ninho Vazio).
Julieta, vigésimo longa-metragem de Almodóvar, que estreia hoje no Brasil, parece, no entanto, dialogar de forma mais intensa com outro filme do diretor sobre o feminino: De Salto Alto (1991), em que Marisa Paredes (também estrela de A Flor do Meu Segredo) vive o papel de uma cantora famosa que mantém com a filha, uma mulher mais frágil e instável que vive à sombra da mãe, interpretada por Victoria Abril (de Kika e Ata-me, também de Almodóvar), uma turbulenta relação pautada pelo ressentimento.
O relacionamento entre mãe e filha também é central, essencial, em Julieta, mais uma incursão do diretor espanhol no melodrama, cujas fronteiras ele está constantemente testando, e reconfigurando. A personagem-título, professora de Literatura Greco-Romana Clássica, é vivida por suas atrizes: Emma Suárez, na fase madura, e Adriana Ugarte, Julieta quando jovem.
A relação entre mãe e filha também é central, essencial, em Julieta, mais uma incursão do diretor espanhol no melodrama, cujas fronteiras ele está constantemente testando, e reconfigurando.
No início do filme, a personagem prepara-se para se mudar com o companheiro, o escultor Lorenzo (Dario Grandinetti, de Fale com Ela) para Portugal. Um encontro acidental com uma amiga da filha de Julieta, Antía, faz a professora mudar de ideia e permanecer na Espanha.
Sem notícias de Antía há 12 anos, Julieta, ao saber que a filha hoje vive na Suíça, é casada e tem três filhos, cai em profundo estado depressivo – ela se reconecta com a dor do afastamento e decide, como uma forma de autopunição, se separar de Lorenzo.
O que teria acontecido entre mãe e filha aos poucos se revela por meio de um longo relato que Julieta escreve em uma espécie de diário/carta a Antía. A narrativa se inicia com o primeiro encontro de Julieta com o pai da jovem, Xoan (Daniel Grao). Os dois se conhecem a bordo de um trem durante uma viagem noturna de tons ao mesmo tempo sombrios e eróticos, que como em uma tragédia grega exemplar, serve de presságio para o que está que está por vir entre o casal.
Mal recebido pela crítica no Festival de Cannes deste ano, Julieta é um Almodóvar menor, mas o diretor, mesmo não tendo feito um grande filme, mantém a habilidade de “sequestrar” o espectador para seu universo cheio de camadas, visuais e narrativas, muitas delas marcadas pela intertextualidade – é brilhante o paralelo entre o herói grego Ulisses, de Odisseia (poema épico clássico de Homero), e Xoan (pescador, navegador), que começa a se desenhar numa das aulas da protagonista. Ou a citação explícita à sinistra personagem da governanta Mrs. Danvers (Judith Anderson), do clássico Rebeca, a Mulher Inesquecível, de Alfred Hitchcock, re-imaginada na figura da rancorosa, e comicamente cruel empregada Marian (Rossy de Palma, atriz-fetiche do diretor), peça central na tragédia que se desenha na trama.
Por essas e outras, Julieta, a despeito de suas fragilidades (seu roteiro é algo formulaico), guarda alguns prazeres cinematográficos irresistíveis.
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