Jean-Marie Straub, que realiza desde 1962 uma obra em alemão, francês e italiano, singular na história do cinema, compõe as Exibições Especiais do 4º Olhar de Cinema, com o recente longa-metragem de 2014, Kommunisten e o curta-metragem, La Guerre d’Algérie!, em que dialogam em uma única sessão, narrativas que se comunicam e hibridizam-se (por isso, aqui, não farei distinção entre um e outro, falarei da sessão como um todo). E foi com essa exibição que dei entrada no Festival Internacional de Curitiba. Ao sair do cinema e rabiscar as primeiras reflexões, encontro dificuldade em verbalizar o que vi na tela. Não me entendam mal, não quero dizer que o filme é ruim, ao contrário, ele é bom, há grandes chances de ele ser muito bom, como já nos disseram: “Um bom filme é aquele que não pode ser contato em palavras”.
Aliás, as palavras também intrigam a narrativa fílmica, talvez possamos arriscar em separar essa experiência cinematográfica em duas camadas reflexivas, verbal e imagética. A primeira parte da sessão valoriza a fala, a tela preta que permanece inalterada por algum tempo provoca estranhamento, apenas ouvimos, mas não vemos. É possível não ver no cinema? A ausência também é uma forma de construção discursiva, a falta de imagens nos remete a falta de rostos daqueles torturados que foram silenciados e tornaram-se dados estatísticos.
Em uma sociedade que não se reconhece, a linguagem não aproxima os indivíduos, ela cria barreiras. O homem e a mulher sem rostos, que de costas para o espectador, ocupam posições diferentes, ela sentada, ele em pé, ela diz que a alegria é a música, para ele a alegria não tem linguagem. Num contexto em que a sociedade é calada, a linguagem torna-se utópica, não é mais possível estabelecer vínculos, as vítimas não falam, não querem, não estão e não são, não se apropriam da linguagem, logo não compartilham alegrias.
Em uma sociedade que não se reconhece, a linguagem não aproxima os indivíduos, ela cria barreiras.
Outro momento de valorização verbal é na cena em que personagens lado a lado, representam a distância entre eles, posicionados como se houvesse uma marcação de cena, todos em seus lugares ocupam um espaço de individualidade coletiva, ora declamam o que leem, ora parecem verbalizar lembranças (quando a câmera aproxima-se dos rostos). A leitura nos remete à história, que existe por meio da escrita, ora transmitindo confiança, ora levantando dúvidas em relação a possível manipulação da escrita.
Quando o espectador convence-se de que se trata de um filme verbalizado, é surpreendido pela câmera estática que filma trabalhadores, remetendo ao filme A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (Sortie des usines Lumière, La, 1895). O som do carro, que não aparece em cena, lembra que o progresso não pertence aos trabalhadores, eles não usufruem da materialidade: são vitimas e reféns desse progresso.
Quando a guerra acaba, a câmera contempla paisagens, passeando em movimentos circulares, há uma liberdade, mas não há caminhos para seguir. As crianças que surgem na imagem bucólica lembram o reinício, um futuro diferente. As árvores sutilmente caídas não deixam esquecer as marcas da guerra. Não é possível reerguer a natureza da vida atingida pelo progresso que cala.
Com uma nova filmagem e algumas sequências de seus filmes anteriores, Straub indaga o sonho singular que poderia salvar nosso mundo: aprender a conviver juntos. Quando o filme privilegia o verbal ressalta que aquele que fala não tem rosto, é vitima. Quando valoriza a imagem remete a falta de voz dessa sociedade sem rosto.
Kommunisten é um filme que representa a presença entre-textos na ausência, no silêncio, no espaço entre tempo e espaço. Compreender e possuir a linguagem verbal e imagética seria o modo de habitar o mundo, criar relações e compartilhar experiências.
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