O diretor de cinema Cristiano Burlan tem uma história marcada pela violência. Perdeu um irmão assassinado pela polícia aos 22 anos; o pai, para o alcoolismo; e a mãe, vítima de um feminicídio. Com esta “herança” na bagagem, Burlan contrariou as expectativas e foi fazer cinema. Primeiro com o média-metragem Construção (2006), seguido pelo documentário Mataram meu irmão (2013) e, por fim, buscando a reconstrução da memória da mãe em Elegia de um crime (2018).
Em entrevista, Cristiano Burlan já mencionou a dificuldade de relembrar o rosto da mãe. Talvez seja a necessidade do resgate desta memória afetiva que o fez voltar à questão dos impactos da violência no seio familiar com A Mãe, longa-metragem que se sagrou como grande vencedor do 29º Festival de Cinema de Vitória (além do prêmio de melhor filme nos júris oficial, popular e crítica, também levou o de melhor diretor, melhor interpretação e melhor fotografia).
O filme é estrelado por Marcélia Cartaxo, que ficou eternizada por sua interpretação de Macabéa no longa A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral. Ela vive Maria, uma mulher sozinha (não há qualquer pai no cenário) que procura o seu filho após o sumiço. Ela mora em uma comunidade localizada no Jardim Romano, em São Paulo, e trabalha como camelô para se sustentar e ao filho Valdo.
Quando este filho adolescente desaparece, Maria precisa se virar sozinha, em um ambiente em que é até esperado que algo ruim aconteça – ou pelas mãos da polícia, ou pelas mãos dos traficantes. A suspeita mais forte é que ele tenha sido vitimado por policiais militares.
A odisseia de uma mãe
A partir do momento do desaparecimento do filme, Maria tem que se desdobrar (ainda que não possa deixar de trabalhar) sozinha para conseguir alguma pista sobre o seu paradeiro. Vai atrás da mãe do amigo que estava com ele no momento, mas ouve apenas evasivas permeadas pelo medo. Fica claro ali que só quem perde o filho tem forças para enfrentar a polícia e o poder paralelo dos traficantes.
Há uma investigação em torno de uma única personagem, de uma mulher sozinha que precisa enfrentar toda a burocracia de uma selva de pedra.
Toda a sequência do filme envolve sua odisseia para tentar descobrir alguma coisa, lutando contra um sistema que se desdobra em múltiplos ramos, e que deixa bastante claro: a dor de uma mãe é apenas mais uma dor neste vale de lágrimas.
Mas Maria, mesmo sofrendo, segue em frente. Ela encara a polícia, a escola, os traficantes, o IML, até chegar no grupo das Mães de Maio, movimento surgido em São Paulo em 2006 unindo mulheres que tiveram seus filhos assassinados pela polícia.
É neste encontro que surgirá a frase mais forte do filme. Uma mãe, em certo momento, declara: “a ditadura não acabou. A ditadura só vai acabar com o fim da polícia militar, porque ela é muito presente dentro das favelas e da periferia”.
O trabalho de uma grande atriz
Claramente, o centro de A Mãe está na performance inspirada de Marcélia Cartaxo, uma veterana do cinema e do teatro. Há uma investigação em torno de uma única personagem, de uma mulher sozinha que precisa enfrentar toda a burocracia de uma selva de pedra.
A Maria de Marcélia Cartaxo é apresentada como uma síntese de todas as mães solo, habitantes das periferias do Brasil, que não têm para onde correr. O estado não acolhe estas mulheres, entendendo que seus filhos são vagabundos que trilharam caminhos ruins. Já na comunidade, ficam emparedadas entre a força paralela da polícia (há grande continuidade entre A Mãe com a história real contada em Rota 66) e a gerência quase subterrânea do tráfico.
Todo este drama encontra corpo e alma nas feições de Maria. O diretor Cristiano Burlan declarou que o projeto já iniciou tendo em mente a escolha do rosto de Marcélia Cartaxo. “Um rosto que reflete a dureza da vida, mas também sua inocência e compaixão”, contou.
A Mãe é um encontro perfeito entre atriz e diretor para a construção de um filme trágico, que se centraliza sobretudo na ação que só a dor insuportável da perda de um filho é capaz de causar.
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