Há filmes cujo significado simbólico transcende as suas qualidades cinematográficas e eventuais defeitos. O espetacular, ainda que irregular, A Mulher Rei, em cartaz nos cinemas brasileiros, se encaixa nessa categoria. O roteiro, baseado em fatos reais, tem como foco uma tropa formada apenas por mulheres, que existia dentro da guarda do reino de Daomé, no território hoje ocupado pelo Benim, na África Ocidental. Esse exército, de fato, existiu até o início do século 20.
No filme, as mulheres são comandadas por Nanisca, personagem da grande atriz Viola Davis (de Um Limite entre Nós) e atacam uma tribo que havia sido saqueada pelo reinado inimigo de Oyó, controlador de todo o território. Esse conflito desencadeia a guerra entre as duas comunidades.
Dirigido pela cineasta afro-americana Gina Prince-Bythewood, de A Vida Secreta das Abelhas, o filme não se limita a esse embate. Há implicações políticas, étnicas, territoriais. O longa, no entanto, vai além.
Outra personagem-chave na trama, além de Nanisca, é Nawi (Thuso Mbedu), em torno da qual se estabelece uma discussão também de forte ressonância feminista. Como os pais da jovem tentam, em vão, arranjar-lhe um casamento, eles, por fim, à disposição do rei Ghezo (John Boyega, de Star Wars: O Despertar da Força) para que ela se torne uma das guerreiras de Nanisca.
‘A Mulher Rei’: jornada da heroína
A Mulher Rei, em certa medida, descreve a jornada do herói/heroína de Nawi, cuja história é fortemente tensionada, ao longo da narrativa, pelo confronto entre forças da tradição e da modernidade. Nawi é rebelde e desafia sua família, mas também as regras desse exército feminino, que de certa forma ainda se espelha em modelos de autoridade masculinos. Ela propõe uma outra ordem.
A Mulher Rei, em certa medida, descreve a jornada do herói/heroína de Nawi, cuja história é fortemente tensionada, ao longo da narrativa, pelo confronto entre forças da tradição e da modernidade.
Daomé, à época, era um reino patriarcal, caracterizado pela subjugação das mulheres. No entanto, há espaço nessa sociedade para uma tropa independente de mulheres guerreiras, sobre a qual sabemos muito pouco, a despeito de muitos afro-brasileiros serem descendentes de indivíduos oriundos daquela região – é importante saber, aqui, que Daomé desafiava Oyo, que se beneficiava escravizando outros povos africanos para vendê-los a mercadores europeus e americanos.
Prince-Bythewood tem diante de si um grande dilema, que a cineasta não consegue superar por inteiro. O filme não se decide entre ser um épico histórico, com empolgantes e espetaculares sequências de ação, e uma discussão mais intimista, nuançada, sobre a condição da mulher africana. Mas isso é um problema menor diante da envergadura do que assistimos na tela.
É de gigantesca importância que uma grande produção hollywoodiana leve ao mundo a história invisibilizada de mulheres negras. Trata-se de uma questão de representatividade. A Mulher Rei arrebata por ser uma história de resistência diante e atrás das câmeras, por ser escrito, dirigido, produzido e estrelado por pessoas pretas, que trazem para si o dever e o desafio de contar suas histórias.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.