Rotular Nickel Boys apenas como um filme seria reduzir sua complexidade e potência artística. O longa-metragem de RaMell Ross, indicado aos Oscar de melhor filme e roteiro adaptado, ultrapassa os limites do cinema narrativo convencional e se estabelece como uma obra profundamente visual e sensorial. Com uma estética cuidadosamente construída, a produção reflete sobre a memória, a violência e a resiliência, articulando passado e presente de forma a desafiar a percepção do espectador.
O feito se torna ainda mais impressionante quando se considera que esta é a primeira incursão de Ross na ficção, após sua aclamada estreia no documentário com Hale County this Morning, this Evening (2019). Seu olhar apurado para a composição e a narrativa fragmentada já se faziam presentes nessa obra anterior, antecipando a abordagem singular que adotaria em Nickel Boys, que chega ao Brasil pelo canal de streaming Amazon Prime.
Baseado no romance vencedor do Prêmio Pulitzer The Nickel Boys, de Colson Whitehead, o filme recria a história da Arthur G. Dozier School for Boys, instituição estatal da Flórida que permaneceu em funcionamento até 2011, deixando um rastro de brutalidade e sofrimento.
Relatos históricos apontam que, na década de 1960, cerca de 500 meninos eram confinados na escola, segregados de acordo com a cor da pele: brancos em um alojamento, negros em outro. Crianças e adolescentes, algumas com apenas cinco anos, eram enviadas ao reformatório por infrações mínimas, como pequenos furtos, evasão escolar ou fuga de casa. Muitos dos sobreviventes, principalmente os meninos negros, denunciaram espancamentos, exploração em trabalho forçado e abuso sexual.
Em 2012, antropólogos forenses começaram a escavar uma área conhecida como Boot Hill, um cemitério na ala negra do campus, onde encontraram 55 túmulos não identificados – embora se estime que mais de 100 crianças tenham morrido sob os cuidados da instituição.
‘Nickel Boys’: narrativa
A narrativa de Nickel Boys acompanha Elwood Curtis (Ethan Herisse) e Jack Turner (Brandon Wilson), dois jovens que encaram a dureza da Nickel Academy a partir de perspectivas distintas. Elwood, brilhante e idealista, tem como referência os discursos de Martin Luther King Jr. e alimenta a esperança de um futuro melhor. Seu destino, no entanto, toma um rumo inesperado quando uma simples decisão – aceitar uma carona – o leva à academia, onde a paisagem bucólica esconde horrores indescritíveis. Lá, ele conhece Turner, um jovem perspicaz e pragmático, que vê o mundo com um olhar cético e realista. O relacionamento entre eles cresce de maneira gradual, de uma hesitação inicial a uma cumplicidade profunda, na qual Turner ensina Elwood a sobreviver e o otimismo de Elwood oferece um brilho de esperança para ambos.
Ross adota uma abordagem visual contemplativa e fragmentada para construir a experiência do filme.
Ross adota uma abordagem visual contemplativa e fragmentada para construir a experiência do filme. Desde os planos iniciais, que exploram o céu vasto, um pomar em meio à paisagem e um retorno ao céu aberto, o diretor estabelece um jogo de perspectivas. No início, acompanhamos a história pelo olhar de Elwood, mas, sutilmente, a câmera passa a apresentar os eventos através dos olhos de Turner, revelando novas camadas da narrativa. Mais tarde, um salto temporal nos transporta à vida adulta dos personagens, oferecendo uma releitura dos acontecimentos e suas consequências. Essa alternância de pontos de vista provoca um impacto emocional profundo, desafiando o espectador a reconsiderar sua percepção da história e dos personagens.
Abordagem indireta e sutil

Diferentemente de outras obras que abordam a violência racial de forma explícita, Nickel Boys evita cenas de brutalidade gráfica contra corpos negros. Em vez disso, Ross opta por uma abordagem indireta e sutil, onde o horror é sugerido em silêncios e ausências. O que não se vê torna-se tão impactante quanto aquilo que se escuta – murmúrios, gritos abafados, passos distantes. O diretor reforça essa estratégia ao inserir imagens de arquivo, que conectam a história dos personagens à realidade do sul dos Estados Unidos durante a era das leis de segregação racial. Entre os fragmentos históricos, há registros da chegada do homem à Lua, que contrastam ironicamente com as injustiças sociais da época, e sequências embaladas por jazz etíope, que intensificam a carga sensorial da narrativa.
Ross não é o primeiro a questionar as representações da experiência negra no cinema, mas sua abordagem se destaca pela originalidade e profundidade. Sua linguagem cinematográfica, que combina imagens poéticas e realistas, envolve o espectador em uma experiência imersiva que desafia a linearidade tradicional da narrativa clássica. No entanto, essa experimentação pode, em certos momentos, criar um distanciamento, levando o público a contemplar a técnica em vez de se perder na história.
Ao final, o que permanece em Nickel Boys são imagens que se fixam na memória: dois garotos trocando sorrisos cúmplices, um abraço afetuoso entre uma avó e o amigo do neto, uma corrida frenética de bicicleta. São fragmentos de beleza e dor que continuam a ecoar muito depois do término do filme. Essas cenas sintetizam não apenas o impacto da obra, mas também expõem as falhas coletivas de uma sociedade que negligenciou tantas vidas. Nickel Boys é, acima de tudo, uma meditação visual sobre a persistência do passado e suas reverberações no presente.
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