“Como dizia meu avô: quando alguém é pobre e ignorante, não cabe em nenhum lugar”. A frase é dita por um dos personagens que aconselha um jovem que está prestes a sair do Paraguai. Em Noites Paraguaias (1982), longa-metragem de Aloysio Raulino, são três línguas faladas: o guarani, o português e o portunhol. Da mesma forma são as visões de mundo que são possíveis analisar no filme: a do nativo, a do brasileiro e a do contemporâneo àquele momento, que vivia uma espécie de hibridização de todas estas culturas.
O filme de Raulino retrata a retirada de personagens que deixam as suas terras no interior rural do Paraguai para Assunção, e de lá, para a dantesca São Paulo. Raulino decide nos apresentar personagens com suas devidas especificidades de uma maneira poética, colocando-os num mise en scène de plano fechado para, daí, abrir o plano até que o vejamos por completo. Essa representação, quase que arquetípica dos personagens, é muito importante para a construção da história: por exemplo, quando vemos o brasileiro, comemorando o fato de estar visitando as terras estrangeiras e, num segundo momento, já na sua terra natal, bêbado – talvez seja uma representação de bipolaridade, um nacionalismo exacerbado que divide os extremos, tanto para a euforia quanto para a depressão.
Num outro momento, quando um garçom, recém-contratado em um restaurante que serve entretenimento paraguaio, começa a enxergar um diabo com um trombone, de um lado para o outro, o atazanando sem parar. Seria uma representação da sua própria condição, enquanto subalterno em uma sociedade que não o reconhece? Ou mesmo um sintoma de ansiedade, uma imagem da sua própria condição mental, talvez?
Raulino vai além, e trabalha também com os estereótipos: seja a mulher de classe média que recebe os “visitantes” paraguaios, o produtor frustrado, que sonha em ter uma vida longe da síndrome urbanóide em que vive, como vivera o seu avô, a própria representação do negro que, ali, se põe, talvez, como um suporte para o protagonista – se coloca diante dele, mas, ao mesmo tempo, do lado.
É muito interessante pontuar também a questão da representação do cinema brasileiro daquele momento específico, final dos anos 70 e início dos anos 80. Prevalece em grandes centros urbanos, especialmente em São Paulo, o cinema “boca de lixo”, representado por uma geração independente que deseja trazer outras formas, mais irreverentes e, ainda assim, cativantes, de trazer uma narrativa.
O produtor que cita O bandido da luz vermelha, enfim, Raulino, através da sua própria representação, enaltece a produção brasileira daquele momento, colocando-a num pedestal que é a simples indicação de que os próprios personagens convivem com ela. E faz mais: representa que esses mesmos realizadores se colocam ao nível ou até mesmo piores do que os retirantes paraguaios – quando o protagonista tenta vender uma camiseta para um cineasta “boca de lixo”, e recebe uma negativa, pois o cineasta não tem recursos para comprá-la.
É nesse tom de comicidade, poesia, representações, por muitas vezes, hiperbólicas, que Raulino constrói personagens que se unem e se conectam, por poucos momentos – como na construção em que o protagonista dialoga com os outros trabalhadores. Nessa representação, é como se o diretor dissesse: são todos do mesmo “balaio”. Ou mais: fazem todos parte de uma parcela de Brasil que de indivíduos pobres e ignorantes que não pertencem a lugar nenhum, como diria o senhor logo ao início. Inclusive o próprio paraguaio.
Noites paraguaias coloca em cena a jornada do imigrante em uma terra diferente.
Num outro momento, creio que seja mais interessante de notar como essa representação de uma classe subalterna, uma classe inferiorizada, é representada no filme diferente dos cineastas do Cinema Novo, lá em meados dos anos 60 e 70. É possível perceber que não há um distanciamento entre o que esses realizadores querem representar e o que eles realmente são. Talvez essas representações hiperbólicas sejam até mesmo um artifício para que isso possa ser representado sem essa lacuna que os cineastas do Cinema Novo não se preocupavam, ou, se preocupavam de maneira menos visível.
Enfim, mais do que apenas uma ode ou mesmo uma narrativa de jornada do retirante paraguaio nos grandes centros urbanos do Brasil, Noites paraguaias coloca em cena a jornada do imigrante em uma terra diferente (até mesmo de maneira meio documental, quando filma as mulheres nativas em um diálogo entre um senhor nativo e o protagonista). O próprio protagonismo é fruto de uma miscigenação, ele não representa o nativo totalmente desligado de uma realidade desenvolvimentista, mas também não deixa de cultivar suas raízes, voltando, inclusive, para a sua terra natal, num último momento.
Esse é outro ponto muito importante no filme: a memória, a ligação com o passado, com a forma como nós somos criados. Ao final do longa-metragem de Raulino, é isso que permanece, a conexão com o passado, com o que, mesmo longe, permanece.
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