O cineasta britânico Christopher Nolan estabelece, já no prólogo de seu novo longa-metragem, Oppenheimer, em cartaz nos cinemas, um paralelo entre seu protagonista, o físico norte-americano J. Robert Oppenheimer e o mito grego de Prometeu.
Na mitologia, Prometeu desempenha um papel significativo na compreensão da relação entre deuses e seres humanos, e da rebelião contra a ordem divina, por meio da busca pelo conhecimento.
Prometeu era um titã, raça de deidades que governou antes dos deuses olímpicos, frequentemente associada à sabedoria e à inteligência. Segundo a mitologia grega, Zeus liderou uma guerra contra os titãs para tomar o controle do Olimpo e estabelecer a supremacia dos seus deuses.
Com a vitória, Zeus permitiu que os titãs vivessem, mas Prometeu revelou-se uma dissonância. Intimamente ligado aos humanos, ele simpatizava com sua condição, desprovida dos dons e habilidades dos deuses olímpicos. Os mortais viviam em um mundo frio, selvagem. Para ajudá-los, o titã decidiu roubar o fogo dos deuses, que simbolizava o conhecimento, a sabedoria e a tecnologia.
Prometeu escalou o Monte Olimpo, roubou uma tocha de fogo do carro do deus Hélio (Sol) e a devolveu à Terra, aos humanos. O fogo trouxe aos mortais calor, proteção e a capacidade de cozinhar, permitindo a eles avanços tecnológicos.
Tomado pela ira, Zeus puniu Prometeu de forma cruel exemplar. Ordenou que o titã dissidente fosse acorrentado a uma rocha no Monte Cáucaso, à qual uma águia vinha todos os dias para comer o fígado do prisioneiro. Mas como Prometeu era imortal, o órgão crescia novamente todas as noites, perpetuando o sofrimento de Prometeu, que, para Christopher Nolan, se assemelha a Oppenheimer, que também teria contrariando os deuses ao conferir à humanidade assombrosas descobertas científicas e tecnológicas, mas, também, a capacidade de autodestruição.
Narrativa
Além de dirigir Oppenheimer, Nolan também assina o roteiro do filme, e a ele traz um traço recorrente na sua obra, desde que se tornou mundialmente reconhecido com Amnésia (2002): a quebra de linearidade.
Nascido em 1904 na cidade de Nova York Oppenheimer, descendente de imigrantes judeus, a despeito de seu brilhantismo como cientista, entrou para a História como diretor científico do Projeto Manhattan, programa de pesquisa que desenvolveu, nos anos 1940, a primeira bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. E chamam de “o pai da bomba atômica”.
Além de dirigir Oppenheimer, Nolan também assina o roteiro do filme, e a ele traz um traço recorrente na sua obra, desde que se tornou mundialmente reconhecido com Amnésia (2002): a quebra de linearidade. A narrativa do longa se desvela em diferentes tempos, que se entrelaçam, o que pode confundir um pouco o espectador mais conservador.
Ao mesmo tempo em que o cientista, no pós-Guerra retratado em preto e branco, é acusado de segurança e enfrenta um julgamento, que pode revogar a autorização de acesso a informações secretas, acompanhamos sua formação acadêmica, desde a juventude. Ele passa pelas universidades de Harvard (EUA), Cambridge (Reino Unido), até obter seu Ph.D. em Física Teórica na Universidade de Gottingen, na Alemanha, em 1927.
Brilhante, Oppenheimer faz contribuições significativas para a Física Teórica, ao longo da década de 1930. Em 1939, se torna professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde se destaca e vira uma celebridade no mundo da ciência.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista começa a trabalhar em seu programa de pesquisa nuclear. Oppenheimer, então, é escolhido para liderar o Projeto Manhattan em Los Alamos, no estado do Novo México, em 1942. O objetivo: desenvolver uma arma atômica antes que a Alemanha crie sua própria bomba.
‘Oppenheimer’: personagem
Nolan, ao mesmo tempo em que valoriza – e muito – a contextualização histórica, recorrendo a um necessário didatismo, tem, do ponto de vista artístico, cinematográfico, uma ambição maior: traçar um perfil psicoemocional, de seu protagonista. Não é fácil trabalhar nessas duas frentes, uma mais documental e outra subjetiva, existencial. E dessa tensão entre o externo e o interno, que o filme, irregular, mas também em muitos momentos brilhante, tira sua força.
O desempenho do ator irlandês Cillian Murphy, habitué na obra de Nolan, tem papel fundamental nessa missão. Atrás uma máscara facial que se altera muito pouco, espécie de fachada social que impede Oppenheimer de demonstrar o que sente, o personagem não busca a empatia do espectador, desafiado o tempo todo a tentar decifrá-lo, e não a gostar dele, para tentar compreender suas motivações.
O trabalho de Oppenheimer no Projeto Manhattan foi uma contribuição crucial para o esforço de guerra dos Estados Unidos e teve um papel decisivo no desenvolvimento da tecnologia nuclear. É impressionante a sequência em que, no deserto no Novo México, é realizado um teste com a bomba antes de seu lançamento no Japão. Nesse momento, Nolan demonstra toda a sua excelência como diretor, utilizando à serviço da narrativa efeitos visuais, som, edição de som, direção de fotografia, trilha sonora e edição, esta, aliás, um dos pontos altos do filme.
No entanto, após o lançamento das bombas e o término da guerra, Oppenheimer se tornou figura controversa devido à sua oposição ao desenvolvimento de armas termonucleares e à sua postura política, por vezes simpática ao Partido Comunista e considerada suspeita, durante o período do macarthismo, que procurava combater a suposta infiltração da esquerda nos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
De herói nacional, Oppenheimer se torna figura maculada, sobre qual recai uma sombra, em torno da qual Nolan constrói toda sua tese sobre o personagem, o retirando do campo simplificador do maniqueísmo. Ele está o tempo todo no fio da navalha. Essa ambiguidade vale para muitos dos personagens, sobretudo para Lewis Strauss (brilhantemente vivido por Robert Downey Jr.) empresário que serviu dois mandatos na Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos (AEC) e se tornou de amigo um dos principais algozes de Oppenheimer.
Em 1954, Oppenheimer tem sua autorização de acesso a informações secretas revogada pelo governo dos EUA. Ele continua a ensinar e conduzir pesquisas, mas sua carreira na física nuclear foi para sempre prejudicada. Como Nolan nunca nos apresente o personagem como um paladino, um herói, essa jornada de ascensão e queda e, por fim, relativa redenção, tem sempre uma gravidade melancólica, agridoce – afinal, a mesma bomba que teria finalizado a Segunda Guerra deixou um rastro de destruição, morte e sofrimento.
O fogo roubado por Prometeu é também uma maldição.
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