No apertado quarto da empregada, envolto pela penumbra e pelo cheiro de umidade, G.H., uma mulher esguia, de traços aristocráticos, mergulha em um momento que mudará sua visão do mundo para sempre. Naquele ambiente sombrio e miserável, que contrasta com o luxo do resto do apartamento, ela se depara com uma presença inesperada: uma barata, símbolo de tudo o que é repulsivo e indesejável. Essa simples criatura desencadeia uma série de pensamentos e sensações em G.H., abrindo as comportas para uma torrente de reflexões e sentimentos até então desconhecidos.
O que torna essa experiência tão marcante não é apenas o encontro em si, mas a maneira como Clarice Lispector o transforma, no romance A Paixão Segundo G.H. (1964), em uma jornada metafísica, uma busca incessante por significado e transcendência por meio da linguagem escrita. G.H. é levada a explorar os recessos mais profundos de sua própria alma, confrontando-se com as questões fundamentais da existência humana.
Luiz Fernando Carvalho, um especialista em capturar a essência de obras literárias complexas, aceitou o desafio de adaptar essa experiência para o cinema. Reconhecido por sua sensibilidade e habilidade em traduzir narrativas intrincadas para a tela, ele se propôs a criar um filme que estivesse à altura da genialidade de Clarice Lispector e fosse fiel a ela, sem abrir mão da reinvenção.
Carvalho já adaptou com maestria para o cinema Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, e, para a televisão, Dom Casmurro, de Machado de Assis, obra que originou a minissérie Capitu, que traz no papel-título a atriz Maria Fernanda Cândido, também protagonista de A Paixão Segundo G.H.
A jornada de G.H. em direção ao desconhecido é marcada por uma série de flashbacks, nos quais somos apresentados ao seu mundo de privilégios e superficialidades.
Desde os primeiros momentos do filme, somos imersos em uma atmosfera densa e intrigante. Os sons da máquina de escrever ressoam no ar, criando uma sensação de urgência e expectativa. As imagens, carregadas de simbolismo, nos transportam para o mundo interior de G.H., onde as fronteiras entre realidade e imaginação se confundem. Maria Fernanda Cândido impressiona como a protagonista.
A jornada de G.H. em direção ao desconhecido é marcada por uma série de flashbacks, nos quais somos apresentados ao seu mundo de privilégios e superficialidades. Essas cenas são contrastadas com a presença da empregada negra, Janair (Samira Narcassa), cuja figura enigmática e silenciosa lança uma sombra sobre a vida luxuosa de G.H. A questão social e racial, apenas insinuada no livro, é explorada com sensibilidade e profundidade na adaptação cinematográfica. Afinal, estamos em 2024.
O filme não se contenta em simplesmente reproduzir a trama do livro, mas busca emular a linguagem poética e fragmentada de Clarice Lispector. Os recursos audiovisuais são utilizados de maneira criativa e inventiva, capturando a essência da narrativa em fluxo de consciência de forma surpreendente.
Os encontros de G.H. com a barata são momentos de intensa experiência sensorial, nos quais ela é confrontada com a fragilidade e a efemeridade da vida. A cena é construída com maestria, alternando entre o horror e a contemplação, enquanto G.H. se vê obrigada a confrontar sua própria mortalidade e fragilidade, como ela mesma descreve.
A presença constante da barata ao longo do filme evoca uma sensação de inquietude e desconforto. A interação entre imagem, palavra, ruídos e música cria uma atmosfera envolvente e perturbadora, que nos transporta para o mundo interior de G.H.
Em suma, a adaptação de Luiz Fernando Carvalho oferece uma interpretação única e envolvente da obra de Clarice Lispector. Seu filme é mais do que uma simples transposição para a tela; é uma jornada sensorial e emocional que enriquece e amplia o universo da autora, proporcionando uma experiência cinematográfica única e memorável, por mais desconcertante que possa ser para alguns.
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