Em Pecadores, o cineasta Ryan Coogler (de Pantera Negra) investe em uma estética da sobreposição e do excesso para reimaginar, de maneira ambiciosa e por vezes desconcertante, o imaginário do Sul estadunidense como espaço de disputa simbólica entre memória, poder e pertencimento. Trata-se de uma obra que rompe com a lógica serial do universo Marvel – ao qual o cineasta esteve atrelado nos últimos anos – para entregar um filme híbrido, que tensiona gêneros, tempos e linguagens numa colagem que transita entre o musical, o horror gótico, o western, o melodrama e a fábula histórica.
Ambientado na década de 1930, no delta do Mississippi, Pecadores parte de uma premissa que poderia soar caricata: uma cidadezinha em plena Lei Seca se vê invadida por vampiros. No entanto, Coogler usa esse ponto de partida como vetor para uma construção mitopoética mais complexa, na qual o sobrenatural se presta menos à literalidade do horror do que a uma metáfora instável – ora evocando o racismo estruturado na figura da Ku Klux Klan, ora encarnando a ilusão da ascensão social como forma de “redenção” histórica da população negra.
A narrativa se organiza em torno de dois núcleos: o dos irmãos Smoke e Stack (Michael B. Jordan, em desempenho dual), veteranos de guerra e ex-gângsteres que retornam à terra natal com um projeto de empreendedorismo comunitário; e o do jovem músico Sammie (Miles Caton), filho de pastor e símbolo de uma pureza idealista que será, aos poucos, corrompida por forças externas. Sammie não é apenas personagem: sua música funciona como dispositivo narrativo capaz de atravessar temporalidades e invocar todo um legado cultural negro.
Em uma das sequências mais impactantes do filme, seu blues se transforma em uma catarse audiovisual que colapsa as fronteiras entre décadas e estilos – de Jimi Hendrix a DJs de vinil, de danças tribais a break – compondo um quadro que celebra a continuidade histórica da expressão musical negra como forma de resistência e reinvenção.
É sintomático que Pecadores dedique boa parte de sua metragem à ambientação do espaço e à apresentação dos personagens, retardando a entrada efetiva do elemento monstruoso. A cidade sulista é cuidadosamente cartografada por longas tomadas e movimentos coreografados de câmera, enquanto Coogler constrói relações afetivas marcadas por tensões raciais, econômicas e sexuais. Esse investimento no espaço e nas subjetividades contrasta com a segunda metade do filme, quando o horror se instala – remetendo diretamente à estética de John Carpenter (de O Enigma de Outro Mundo e Assalto à 13ª DP) e à estrutura de cerco característica do faroeste clássico de Howard Hawks.
A presença dos vampiros, embora central no marketing do filme, opera de modo mais simbólico do que literal. Diferentemente de obras que apostam em uma alegoria cerrada, Pecadores opta por uma polissemia inquietante: o que esses monstros representam exatamente? A violência racial estrutural? O desejo reprimido? O peso de um passado não resolvido? Coogler se recusa a oferecer uma resposta definitiva, e talvez aí resida uma das qualidades mais desafiadoras do filme, sobretudo em um contexto saturado por narrativas de horror que se pretendem abertamente didáticas.
Se, por um lado, essa recusa ao fechamento metafórico pode ser lida como estratégia de abertura crítica, por outro, ela revela as limitações de um roteiro que não desenvolve plenamente seus protagonistas. Jordan interpreta os gêmeos com carisma, mas as motivações de Smoke e Stack permanecem mais arquetípicas do que propriamente dramáticas. O mesmo vale para Sammie, que assume uma função quase messiânica na estrutura do filme, sem, no entanto, ganhar densidade psicológica correspondente.
Do ponto de vista formal, Pecadores impressiona pela orquestração sonora e visual. A montagem tem musicalidade própria, o uso do som contribui para a criação de uma atmosfera simultaneamente épica e íntima.
Do ponto de vista formal, Pecadores impressiona pela orquestração sonora e visual. A montagem tem musicalidade própria, o uso do som – tanto diegético quanto extradiegético – contribui para a criação de uma atmosfera simultaneamente épica e íntima. A trilha de Ludwig Göransson mistura instrumentos tradicionais do country-blues com ambiências dissonantes, acentuando a sensação de anacronismo que permeia toda a obra.
Coogler parece interessado em compor uma espécie de sinfonia visual sobre a cultura afro-americana, que extrapola o tempo da diegese e propõe uma leitura histórica através da estética.
Em síntese, Pecadores é um filme imperfeito, mas fundamental. Imperfeito porque sofre com certa dispersão narrativa e com personagens subaproveitados; fundamental porque ousa tensionar o cinema de gênero com uma carga simbólica que articula memória, política e cultura de maneira singular. Ao se libertar das amarras do cinema industrial tradicional, Coogler realiza aqui seu gesto mais autoral – uma obra que, apesar de sua fragmentação, se inscreve como ato de resistência estética e de afirmação identitária.
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