O cineasta mexicano Guillermo del Toro se alimenta de obras do passado, preexistentes, para lhe dar novo significado, e de certa forma trazê-las para contemporaneidade. O diretor fez isso, por exemplo, com A Forma da Água (2017), que lhe deu o Leão de Ouro no Festival de Veneza e os Oscar de melhor filme e direção. Fez o mesmo, mais recentemente, em O Beco do Pesadelo (2021) mais recentemente e, agora, com Pinóquio, forte candidato ao Oscar de melhor longa-metragem de animação.
Já vencedora do Globo de Ouro e do Critics’ Choice Award, a nova adaptação do clássico infantil de Carlo Collodi, produzido pela Netflix, plataforma de streaming onde o filme já pode ser assistido, levou 15 anos para ser realizado, porque nenhum grande estúdio ou produtora apostava em uma custosa e trabalhosa releitura, por meio da técnica stop-motion, de uma história tão conhecida.
Além da célebre versão dos Estúdios Walt Disney, lançada em 1940, a trama de Collodi ganhou, apenas neste século, versões em 2002, pelas mãos do italiano Roberto Benigni (de A Vida É Bela), que, em 2019, estrelou, no papel de Geppetto (o “pai” do boneco de madeira) outra adaptação, assinada pelo conterrâneo Matteo Garrone (de Gomorra).
Em 2022, foi a vez do norte-americano Robert Zemeckis (de Forest Gump – O Contador de Histórias) revisitar a história, trazendo o astro Tom Hanks como o velho escultor que cria para si um filho de madeira.
Nenhum dos filmes citados, entre mais erros do que acertos, é excepcional, memorável. Mas a versão de Del Toro é, e se irmana, de certa maneira, a AI – Inteligência Artificial, brilhante releitura sci-fi de Steven Spielberg (em parceria póstuma com Stanley Kubrick) do conto de fadas italiano.
‘Pinóquio por Guillermo del Toro’: fascismo
Guillermo del Toro, ao adaptar o clássico de Collodi, dá um passo à frente, a politizando. A ação é transposta para a Itália de Benito Mussolini, onde Geppetto (dublado por David Bradley, o Argus Filch da franquia Harry Potter) é um escultor que vive na região dos Alpes.
Lá, em seu vilarejo, ele realiza a grande obra de sua vida numa igreja da localidade, quando seu único filho, Carlo, é morto, no interior do templo, durante um bombardeio aéreo na Segunda Guerra Mundial.
Pinóquio, nesse microcosmo fascista e autoritário, é rejeitado e hostilizado, como seu criador, “o artista”. Ambos são vistos como contraventores, traidores da pátria.
A tragédia abala o velho artista de tal forma, que ele não consegue finalizar o trabalho que lhe foi encomendado e começa a beber compulsivamente, se tornando uma espécie de pária local. Até que um dia, do tronco de uma árvore, habitada pelo Grilo Falante (Ewan McGregor, de Moulin Rouge – O Amor em Vermelho), ele cria Pinóquio, que faz lembrar Carlo, de quem recebe a voz após um encantamento realizado pela fada Spazzatura, dublada por Cate Blanchett, com quem Del Toro trabalhou em O Beco do Pesadelo.
Sob a mão-de-ferro de um prefeito alinhado ao fascismo, a cidadela, guiada cegamente pelo lema “Pátria Acima de Todos e Deus Acima de Tudo”, não está preparada para aceitar um boneco de madeira com movimentos, voz e vontades que a desafiam. Ele representa a arte, a imaginação e o sonho, valores que subvertem a restrita ordem vigente, pautada pela disciplina e pela obediência cega.
Pinóquio, nesse microcosmo fascista e autoritário, é rejeitado e hostilizado, como seu criador, “o artista”. Ambos são vistos como contraventores, traidores da pátria. O boneco, preocupado com o pai, que acumula dívidas por não ter entregue a obra pela qual foi pago, decide sair pelo mundo, seduzido pelo ardiloso e manipulador Conde Volpe (Christophe Waltz, de Bastardos Inglórios), dono de um circo itinerante decadente. Ele enxerga em Pinóquio a possibilidade de reacender no público o interesse por seu espetáculo.
A jornada do herói de Pinóquio, que se aventura para além da cidadezinha onde foi criado para encontrar a sua verdade, vai, conforme a história original de Collodi, chegar às entranhas de uma baleia, onde ele reencontra Geppetto. Mas, ao contrário, do conto, o boneco, sempre em diálogo fisolsófico-existencialista com o Grilo Falante, não se sentirá na necessidade de ser tornar humano, de deixar de ser “o outro”, diferente e de madeira, para ser aceito e se impor. O fascismo não vence.
Del Toro, possivelmente impactado pela ascensão dos discursos da extrema direita ao redor do mundo, recorre à arte da animação, que associa tecnologia de ponta a extremo esmero artístico, para tecer uma tocante mas sempre provocativa fábula musical (a trilha do francês Alexandre Desplat é belíssima) de contundentes acordes políticos. Criou um novo clássico do cinema.
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