Condensar seis décadas de carreira e quase 80 anos de vida em apenas 80 minutos parece, à primeira vista, uma missão impossível — especialmente quando a biografada é Rita Lee, figura central da música e da cultura pop brasileira, cuja existência foi, em si, um constante ato de reinvenção. O documentário Ritas, em cartaz nos cinemas e dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley, não foge dessa constatação. Mas ao invés de fracassar diante da vastidão do tema, faz de sua limitação temporal uma escolha estética e narrativa: não pretende esgotar Rita, e talvez resida justamente aí sua maior potência.
Longe da tentativa de construir um retrato totalizante ou cronológico, Ritas se assume como uma celebração fragmentária, íntima e afetiva — como se o filme compartilhasse com o espectador não uma biografia convencional, mas uma espécie de conversa poética entre diferentes camadas da artista.
A estratégia central está na decisão de entregar a narrativa à própria voz de Rita, que guia o filme por meio de gravações inéditas, entrevistas antigas, registros caseiros e reflexões que, mesmo em seu caráter confessional, nunca se acomodam no lugar-comum. Ela é única.
É Rita quem nos conduz, com sua habitual mistura de sarcasmo e doçura, por memórias que transitam entre o sucesso, a contracultura, a maternidade, os rompimentos, os vícios e a espiritualidade. E o faz com uma lucidez que impressiona: não há concessões ao melodrama, tampouco ao endeusamento. O que emerge é uma figura complexa, ciente das suas contradições e orgulhosa de suas transgressões, cuja maior ousadia talvez tenha sido nunca se prender a uma identidade fixa.
O aspecto visual do filme reforça essa multiplicidade. Animações psicodélicas, intervenções gráficas e uma montagem não-linear evocam o imaginário tropicalista e o espírito experimental que sempre marcaram a estética de Rita. A câmera, quando a encara, nunca a aprisiona. Antes, celebra seu descompromisso com padrões, captando uma presença que desafia tanto o tempo quanto o rótulo.
A trilha sonora, como seria de se esperar, tem papel central. Mais do que pano de fundo, as músicas aparecem como camadas adicionais da narrativa, conectando o espectador a uma memória coletiva e afetiva que transcende a figura individual de Rita. Cada canção é uma cápsula de tempo, um comentário, um eco de uma geração inteira — e, ao mesmo tempo, uma pista sobre a Rita que habita em cada um de nós.
Ritas chega aos cinemas no mesmo ano em que a plataforma de streaming Max lançou Rita Lee: Mania de Você, documentário em três episódios que também busca traçar um retrato da artista, mas com uma abordagem mais documental e cronológica, incluindo depoimentos de familiares, amigos e parceiros musicais. Ao contrário desta produção televisiva, que oferece um painel mais abrangente e contextual, Ritas aposta na subjetividade como linguagem — menos interessada em explicar Rita e mais empenhada em senti-la.
Ritas chega aos cinemas no mesmo ano em que a plataforma de streaming Max lançou Rita Lee: Mania de Você, documentário em três episódios que também busca traçar um retrato da artista, mas com uma abordagem mais documental e cronológica.
É verdade que Ritas pode provocar em alguns espectadores a sensação de incompletude. Mas o filme nunca se propõe a ser um inventário exaustivo, definitivo. Muito pelo contrário. Ele opera no registro da emoção e da sugestão, e nesse sentido, cumpre com precisão o gesto que parece guiá-lo: fazer do cinema um espelho sensível de uma artista que sempre viveu fora dos quadros, dos moldes e das fórmulas.
No fim, mais do que uma biografia, Ritas é um reencontro — entre Rita Lee e seu público, entre Rita e ela mesma, entre Rita e um país que a viu se tornar símbolo de liberdade, resistência e amor. Um convite, como bem define Oswaldo Santana, a viver o momento. E a vivê-lo como Rita viveu: com intensidade, honestidade, ironia e uma deliciosa recusa em ser apenas uma.
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