A cultura ballroom ganhou evidência nos últimos anos por conta da série Pose. Mas uma personagem entrevistada no ótimo Salão de Baile, documentário dirigido por Juru e Vitã e exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que mostra a cena ballroom do Rio de Janeiro, já esclarece: ali não tem nada de Pose. Para ela, os bailes são como “uma UPA: às vezes você chega lá mal e sai bem; às vezes entra machucado e sai machucado; às vezes entra bem e sai pior”.
A fala já dá um bom resumo sobre a força dessa cena surgida nos Estados Unidos nos anos 1970, como uma forma de resistência das travestis negras que nunca se tornavam pageant queens (nome usado para designar as vencedoras dos concursos de beleza dentro da comunidade queer e drag). Essas pessoas, relegadas à margem em muitos aspectos, foram organizando seus próprios locais em que se sentiam acolhidas e passaram a realizar seus próprios concursos.
Aos poucos, essa cultura se espalha e chega também aqui no Brasil, ganhando características bastante específicas. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela se espalha sobretudo nas regiões periféricas à cidade, e leva à formação de casas (as famosas houses) em que uma “mãe” abre os braços para outras travestis, que, na maior parte das vezes, eram rejeitadas pela sua família de origem.
Seguindo esse caminho, o documentário tem como centro um grande baile em Niterói, que reúne pessoas abraçadas por casas da cidade, como House of Mamba Negra, House of Alafia, House of Bushidö, House of Cabal, Casa de Dandara, Casa dy Fokatruá, Casa de Lafond, entre diversas outras.
This is Ballroom
Mas o grande acerto de Salão de Baile é que o filme encontra um caminho fantástico para contar essa história: mostrando os dramas envolvendo essas pessoas, mas também abordando o humor característico do ballroom – além de exibir, claro, muita dança.
Salão de Baile encontra um caminho fantástico para contar essa história: mostrando os dramas envolvendo essas pessoas, mas também abordando o humor característico do ballroom.
Juru e Vitã, artistes que também fazem parte da cena ballroom do Rio de Janeiro, certamente usaram essa proximidade com o tema para captar depoimentos francos e valiosos, que impactam e comovem, na mesma medida em que divertem.
Há também um didatismo usado na medida certa para explicar aos desavisados que chegarem ao filme elementos básicos dessa cultura, o que inclui explicações sobre as categorias da competição (o que inclui o voguing, o batekoo, o passinho e a passarela, entre várias outras). Isso inclui, inclusive, um leve shade sobre a apropriação que Madonna fez da cena.
Mas mesmo que o clima seja de celebração, Salão de Baile não se furta de mostrar os conflitos: ballroom não é exatamente um mar de rosas, como afirmam várias personagens. Há uma tensa cena de briga e a exposição do preconceito sustentado por muitos participantes da cena em relação às pessoas não-binárias, que se recusam a performar imagens masculinas e femininas de modo estrito.
Mas ainda nem que tudo sejam flores, o saldo do que é apresentado pelo documentário deixa claro que, na maior parte das vezes, esses espaços construídos pela comunidade LGBTQIA+ representam possibilidades de sobrevivência a pessoas que foram postas à margem por toda a sociedade, que repete o tempo todo que suas vidas não importam. No ballroom, pela primeira vez, elas são rainhas. E a força de Salão de Baile é mostrar, de uma maneira muito potente, o quanto elas podem brilhar. Um documentário imperdível.
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