O poder de Pose é maior do que o próprio roteiro da série. E afirmo isso porque, embora a produção de Ryan Murphy, Steven Canals e Brad Falchuk apresente alguns problemas, Pose consegue manter sua qualidade e relevância intactas. Tal como a primeira temporada, este ano a série apresenta uma história comovente e personagens absolutamente verdadeiros. Em cada cena, o seriado respira intensidade.
Após um salto de três anos na história, Pose nos leva para 1990. A estratégia dos roteiristas foi alcançar a época de lançamento da canção “Vogue”, imenso sucesso de Madonna e que colocou luz sobre a comunidade drag e dos bailes, que há anos vivia nas sombras da periferia. Blanca (Mj Rodriguez) e seus filhos Angel (Indya Moore), Damon (Ryan Jamaal Swain) e Papi (Angel Bismark Curiel) continuam unidos, mas aos poucos cada uma vai seguindo seu caminho, com Damon se tornando um promissor bailarino e Angel uma modelo internacional.
Elektra (Dominique Jackson), cansada de viver na casa Evangelista, acaba fundando uma nova família, a casa Wintour, e arranja um emprego bem remunerado, embora um tanto quanto bizarro. Pray Tell (Billy Porter) continua liderando os bailes, mas sua saúde já começa a ficar debilitada devido ao avanço do vírus HIV ao mesmo tempo em que ele descobre a importância de se envolver no ativismo para cobrar do governo um tratamento digno aos soropositivos.
Além dos personagens principais, o segundo ano de Pose também destaca outros rostos, um imenso acerto narrativo. Quem ganha atenção é Candy (Angelica Ross), em um dos episódios mais fortes da temporada. Deixando um pouco de lado o alívio cômico, Candy ganha um pano de fundo mais complexo, especialmente ao mostrar o risco e violência que transsexuais correm ao serem marginalizados por toda a sociedade, ainda mais nos anos 1990. É nesse momento que a série mostra que a realidade é muito mais do que um episódio de RuPaul’s Drag Race.
Se no primeiro ano a série trazia um glamour em meio ao drama, este ano ela traz uma narrativa mais urgente e sombria, mas sem perder a delicadeza e esperança. A epidemia da Aids se alastra sem o menor apoio governamental e Blanca e Pray Tell correm contra o tempo. Embora um novo medicamento traga uma certa esperança, diversos amigos continuam a morrer e frequentar velórios acaba se tornando rotina.
Tal como fez no telefilme The Normal Heart, Ryan Muprhy e os roteiristas conseguem mostrar o drama da Aids de maneira bastante crua e impactante. Pessoas mais pobres não têm acesso à droga mais recente, o AZT, e o preconceito com soropositivos continua mesmo após a morte, já que até mesmo enterrar um amigo fica difícil quando todos têm medo de uma possível contaminação e dificultam a liberação do corpo. Várias pessoas são desovadas pelo governo em terrenos longe da cidade.
Trazendo discursos e situações comuns a vida de todas essas pessoas, Pose traz pequenos momentos de grandeza que emocionam.
É verdade que o roteiro se perde quando pensamos no desenvolvimento de personagens. Neste ano, há diversos problemas entre um episódio e outro, quando algumas situações soam forçadas apenas para criar alguma situação em favor da narrativa, tal como a atitude de algumas pessoas, como Damon e Angel, ou a própria falta de desenvolvimento de Candy, que poderia ganhar muito mais impacto caso tivessem trabalhado melhor sua personagem anteriormente. Outro problema é que os roteiristas pareciam decididos a criar momentos-chave para fazer o público se emocionar, o que prejudicou um pouco a fluidez da narrativa.
Entretanto, esses percalços não prejudicam o impacto que é assistir à Pose. A cada cena, a série carrega uma verdade em seu texto que impacta o telespectador, especialmente a comunidade LGBTQ+. Trazendo discursos e situações comuns a vida de todas essas pessoas, o seriado traz pequenos momentos de grandeza que emocionam.
O grande acerto é que, a cada cena, episódio e diálogo, é visível o envolvimento de toda a equipe para criar algo especial. Por isso, mesmo com os problemas já citados, a série tem alma, pois todos os envolvidos ali vivem ou já viveram boa parte do que é mostrado na tela. Billy Porter e seu Pray Tell é uma verdadeira avalanche, trazendo intensidade em cada cena e olhar. Seu trabalho este ano é digno de prêmios, sendo um dos atores mais intensos da série.
MJ Rodriguez evoluiu como atriz e transforma sua Blanca em uma personagem ainda mais comovente, especialmente quando vemos que sua vida parece ser uma sucessão de fracassos, mesmo quando sente o gosto da vitória. Ao assistir todos os seus filhos seguirem suas vidas, Blanca acaba sozinha, mesmo cercada de amigos, em uma cena melancólica e significativa. Dominique Jackson também ganha muito mais complexidade, apresentando força e vulnerabilidade de maneira inspiradora.
Pose traz muitas mensagens dentro de pequenas cenas. Desde a violência a transsexuais, a epidemia da Aids, a apropriação da cultura ball por brancos ricos, empoderamento e a força da comunidade LGBTQ+, o programa é um manifesto, um afronte. Uma das cenas mais lindas deste ano traz dois homens negros fazendo amor, com toda a poesia e sensualidade que o audiovisual pode proporcionar. A cena é delicada e diz muita coisa, seja para a narrativa ou para a história da televisão.
A mera existência de Pose no horário nobre da televisão norte-americana já faz dela importante. É a história de uma comunidade que sobrevive, mesmo quando quem faz parte dela é dizimada, seja por uma doença ou pelo preconceito. É uma série que precisa existir. É uma das poucas produções que conseguem falar sobre diversidade trazendo uma equipe realmente diversa. E é uma das poucas séries que nos lembra da beleza da vida e da importância da resiliência. Continuaremos resistindo, mesmo em meio ao caos.