Quando o filme russo Sem Amor (2017) começa, a câmera demora-se na focalização de paisagens naturais cobertas de neve que se sucedem. Quem assiste tem à sua frente o conceito mais elementar sobre a sétima arte: o de que cinema é fotografia em movimento. As imagens expostas no início de Sem Amor são verdadeiras fotografias. Belas em sua composição. Simbólicas em sua exposição. Não demora muito para o espectador mais atento e sensível tecer uma relação entre as paisagens congeladas e o título da obra, interpretando, antecipando e prevendo que esse conjunto de imagens paradas e silenciosas são o prólogo, sim, de muita frieza sentimental.
A trama destaca o casal Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin), que está à beira de um divórcio. O roteiro é bem didático ao mostrar que os dois já investem em novos relacionamentos, enquanto trocam agressões verbais e demonstram muito ressentimento mútuo. E ele parece ser mais intenso por parte de Zhenya, uma mulher tão viciada em celular que a composição da personagem beira o estereótipo.
Um agravante do processo de separação é que existe um filho “em jogo”. Usar a expressão “em jogo”, apesar de sua aparente brutalidade e inadequação, encaixa-se perfeitamente no contexto. Basta observar minimamente a forma fria, gélida, com que tanto a mãe quanto o pai tratam Alyosha (Matvey Novikov), de doze anos. Em um dos diálogos, ambos discutem quem ficará com o menino, como se ele fosse uma espécie de bola cheia de espinhos ou um objeto bastante quente, algo capaz de incomodar com a sua simples aproximação.
Inexiste qualquer cena na qual os três apareçam juntos. Inexiste qualquer enfoque de família unida; muito pelo contrário.
Inexiste qualquer cena na qual os três apareçam juntos. Inexiste qualquer enfoque de família unida; muito pelo contrário. O que se tem é uma família em processo total de desestruturação, na qual a mãe preocupa-se com o novo namorado e postagens em redes sociais e o pai preocupa-se com os efeitos de seu divórcio na empresa onde trabalha, administrada por um cristão ortodoxo.
Alyosha, como previsto, é profundamente atingido por tamanha rejeição e desleixo dos pais. Ele segue sua vida silenciosa e discreta, paupérrima de falas, mas lotada de ressentimentos. Assim ele prossegue até que o roteiro lança um fato que mostra o quanto a falta de amor do título pode mobilizar uma série de pessoas e fazer Boris e Zhenya reverem (ou não) as atitudes que vinham alimentando. É aí que Sem Amor aproxima ainda as suas lentes para a psicologia dos personagens principais que tomam a tela, reforçando algo que acontece desde o início da obra.
Sem Amor é mais um drama a compor a filmografia de Andrey Zvyagintsev, diretor de Leviatã (2014), que projetou o diretor russo ao concorrer a uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro em 2015 e ganhar o Globo de Ouro daquele ano na mesma categoria. Ao mostrar uma família que perde na Justiça a batalha para um prefeito mau caráter, Leviatã expõe a supremacia do Estado sobre a pequenez do cidadão, lembra a crítica do escritor tcheco Franz Kafka ao absurdo dos sistemas e demonstra a sensibilidade do diretor em orquestrar todos os elementos que lança na tela.
Assim acontece também com Sem Amor, levando os cinéfilos a prestarem mais atenção quando leem o nome Andrey Zvyagintsev atrelado a alguma produção. Como em Leviatã, Sem Amor tem roteiro assinado pelo próprio Zvyagintsev e por Oleg Negin. Da mesma forma que o filme anterior, é um trabalho que parte de uma situação bem particular (os conflitos de um casal) para alcançar uma leitura universal (a frieza do ser humano, desprovido de sentimentos além da busca do próprio prazer). E essa leitura é capaz de impactar por um bom tempo.
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