É (quase) sempre noite neste filme de Tim Burton. Em mais esta parceria com o ator Johnny Depp, o diretor cria um mundo obscuro, marcado por um tom azul capaz de fazer com que todos adentrem no universo noturno – e soturno – do barbeiro injustiçado e sedento de vingança a qualquer preço.
Em Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007), Tim Burton transforma Johnny Depp em um novo Edward. Mas ao invés das tesouras, há navalhas com cabo de prata. E ao contrário da ingenuidade da fábula do início dos anos 90, agora há muito amargor, ódio e, como consequência disso tudo, abundância de sangue.
A mescla de sangue e música conta a história do barbeiro Benjamin Barker. Após passar muitos anos preso injustamente, ele retorna com a intenção de vingar-se do juiz Turpin (Alan Rickman), que roubou sua amada e o lançou na prisão num estalar de dedos. Na verdade, não havia crime algum contra o barbeiro.
Ao voltar para a Rua Fleet, em Londres, Barker encontra o andar de baixo de sua residência ocupado pela senhora Lovett (Helena Bonham Carter), confeiteira que faz as piores tortas da cidade. Agora autodeclarado Sweeney Todd, Barker reocupa seu lugar. Mas a forma como acaba o ato de fazer a barba dos clientes é apenas pretexto para atenuar a sede intensa de vingança até que a maior meta de sua vida seja alcançada.
Enquanto esse apogeu não acontece, seu desejo de retaliação faz muitas vítimas e, de certa forma, espalha-se pela cidade. Isso porque nasce uma simbiose entre Todd e Lovett. Ele intensifica seus sentimentos mais rancorosos, ela atenua os percalços nos negócios.
Enquanto ele, em cima, assassina e lança suas vítimas para o andar inferior, ela, embaixo, aproveita a carne fresca como principal ingrediente das tortas. O recheio misterioso faz sucesso, a loja fica lotada de fregueses e a cidade torna-se um antro de antropófagos, mesmo que involuntários. Sem saber, todos acabam partilhando do apetite de Todd por vingança.
A interpretação desse ingrediente da trama pode ir além. É como se o casal provocasse, por meio da morte, uma ruptura nos limites das classes sociais. Ao tecerem conjecturas sobre quais seriam suas vítimas, Todd e Lovett ignoram distinções estipuladas pelas convenções sociais. Abastados e miseráveis compõem o mesmo cardápio e são servidos para abastados e miseráveis. “Não separaremos os grandes dos pequenos. Serviremos qualquer um para qualquer um”, afirmam.
É como se o casal provocasse, por meio da morte, uma ruptura nos limites das classes sociais. Ao tecerem conjecturas sobre quais seriam suas vítimas, Todd e Lovett ignoram distinções estipuladas pelas convenções sociais.
A frieza do barbeiro demoníaco da Rua Fleet é demonstrada de modo insistente, seja primeiramente pela interpretação do ator, seja pela iluminação, maquiagem e pelo encadeamento do roteiro. Uma das cenas mais emblemáticas disso é o reencontro de Todd com suas navalhas, carinhosamente por ele chamadas de “amigas”.
Enquanto ele canta evidenciando profundo afeto pelos instrumentos frios e cortantes, a anfitriã confeiteira igualmente demonstra sentimento profundo pelo barbeiro. As palavras por ele cantadas às navalhas são praticamente as mesmas entoadas por Lovett a Todd: enquanto ele ama as navalhas, Lovett ama o ser humano que as manipula.
Todd, inclusive, só retoma a consciência de que está acompanhado de uma pessoa quando vê o reflexo de Lovett na lâmina. Mas opta pela segunda em detrimento da primeira ao ordenar com o rancor habitual: “Deixe-me!”
Essa cena torna-se ainda mais emblemática em seu final. As navalhas com cabo de prata funcionam como uma extensão do próprio corpo de Todd. A analogia com Edward – Mãos de Tesoura delineia-se de modo mais acentuado quando o barbeiro empunha uma das navalhas e afirma: “Finalmente meu braço está completo de novo”.
Reunindo atores cuidadosamente ensaiados, composição artística louvável e um roteiro bem elaborado, Sweeney Todd… consegue provocar um resultado estranho, aparentemente contraditório: é capaz de ser poético mesmo em meio ao terror que permeia a narrativa. Dessa forma, pode ser capaz de agradar a gregos e troianos. Ou melhor: a fãs de drama, terror, musical ou de todos esses gêneros ao mesmo tempo.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.