Uma narrativa que se passa completamente dentro de um apartamento de classe média alta poderia muito bem ser uma peça de Nelson Rodrigues. No entanto, o filme de Arnaldo Jabor, Tudo bem (1978), consegue captar a lógica rodrigueana para o cinema, e o faz de maneira bastante hábil. Logo após a repercussão positiva da crítica dos longa-metragens Toda nudez será castigada (1973) e O casamento (1975), o cineasta, que bebeu desde cedo das raízes do Cinema Novo, continua a investir na crítica abrasiva de uma classe média alheia ao seu universo social diante de um regime militar.
Se nos dois últimos filmes o realizador contempla várias nuances de personagens tomados pela hipocrisia moral no Brasil, em Tudo bem, a crítica é ainda mais ampla e abarca principalmente um país que era constantemente bombardeado pela propaganda de um suposto milagre econômico. Ao mesmo tempo, ocorria uma exponencial migração do meio rural para os grandes centros urbanos, especialmente por conta no aumento da demanda por mão de obra barata para construção civil.
É dentro deste contexto que a família de Juarez (interpretado por Paulo Gracindo), um senhor aposentado do IBGE, recebe dentro de sua casa vários operários para uma grande reforma a qual Elvira (Fernanda Montenegro), sua esposa, lutou por 26 anos para que o marido cedesse. Convicta de que Juarez a traía com uma bela jovem chamada Valdete, a mulher fazia de tudo para que ele o notasse. No entanto, o seu esposo vivia de alucinações de três amigos falecidos: um integralista de carteirinha, Alarico Sombra (interpretado por Jorge Loredo, o famoso Zé Bonitinho), um poeta, Penteado (Luiz Linhares) e um dono de uma fábrica de macarrão, Giulio Giacometti (Fernando Torres).
Tudo bem abarca todos os brasis possíveis dos anos 1970 dentro de um apartamento.
As três personalidades compunham a própria persona de Juarez – um homem de classe média alta que tinha convicções muito marcadas sobre o Brasil: via beleza na antropofagia cultural dos tempos de Castro Alves, ao mesmo tempo que acreditava piamente no liberalismo econômico, fruto de uma suposta meritocracia. No entanto, com a chegada dos operários em determinada manhã em sua casa, essas convicções começam a ser abaladas e cada uma das personas criadas por seu subconsciente acaba desmoronando, especialmente a de Alarico.
Jabor trabalha com espécies de esquetes ao logo de todo o longa. Embora a história seja completamente centrada em volta da construção no apartamento, os personagens são múltiplos e tantos que não se é capaz de determinar apenas um fio narrativo. As alegorias de um Brasil miscigenado são colocadas ao extremo em Tudo bem: desde o retirante nordestino que chega à cidade grande para ganhar a vida, a uma empregada doméstica cheia de misticismos e outra que era prostituta em horas vagas. Simultaneamente, quase como num mundo paralelo, existem ainda os filhos do casal Juarez e Elvira: Vera (numa interpretação cômica de Regina Casé), uma jovem que sonha em encontrar um marido a todas as custas, e Zé Roberto (Luís Fernando Guimarães), um rapaz com futuro promissor enquanto relações públicas de uma multinacional.
Trabalhado em cores, Tudo bem tem uma estética muito comum aos longa-metragens brasileiros dos anos 70: ali no canto da tela se enxerga uma espécie de marginalidade, seja pelos figurinos baratos, pelo cenário quase que improvisado ou mesmo pelas sequências longas. Há momentos em que a crítica se confunde com uma paródia inusitada, da comédia pela comédia, quando, de repente, a empregada embala um cortejo carnavalesco com os operários ou quando cantarola “Como nossos pais”, de Belchior, em ritmo debochado, para dizer que se cansou da vida de doméstica e prefere mesmo trabalhar como prostituta.
No fundo, é possível dizer que o filme inteiro, em si, é zombeteiro, a começar pelo nome: Tudo bem. Existe uma crítica escancarada à cordialidade brasileira, que mais tarde será melhor trabalhada pelos filmes de Sérgio Bianchi, por exemplo, mas que ali, no final dos anos 70 no Brasil, cabe muito bem. Como quando a personagem de Fernanda Montenegro conversa simpaticamente com os operários, tentando criar uma espécie de simpatia entre eles e mais tarde combina com o marido uma encenação para mandar a família de um dos retirantes que trabalhava em sua casa para fora. De certa maneira, o “tudo bem” de Arnaldo Jabor é um “tudo bem” que representa essa falsa cordialidade, tão atrelada à própria classe média brasileira.
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