A mais recente obra da cineasta Payal Kapadia, Tudo Que Imaginamos Como Luz, revela uma ternura incomum que se destaca não apenas dentro do cinema indiano contemporâneo, mas também no cenário cinematográfico global.
Em uma era em que narrativas de romance, desejo, sexo e perda frequentemente recaem em abordagens artificiais – ou marcadas por uma condescendência manipulativa para com os personagens, ou centradas em traumas representados de forma sensacionalista -, Kapadia encontra um caminho alternativo e profundamente humano.
Muitos filmes recentes optam por provocar sentimentos de pena no público, o manipulando para se conectar aos protagonistas de maneira superficial, ao invés de explorar as complexidades emocionais genuínas entre as figuras centrais da trama. Kapadia, porém, contraria essa tendência, permitindo que seus personagens vivenciem sentimentos intensos, tanto entre si quanto em relação ao ambiente em que estão inseridos.
O que eleva Tudo Que Imaginamos Como Luz, Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2024, é sua abordagem sensorial, que transcende diálogos e narrativas explícitas. A trilha sonora, composta por Topshe, apresenta uma suavidade jazzística que, junto ao design de som, transforma a cacofonia caótica de Mumbai em uma espécie de sinfonia improvisada, reminiscente do lo-fi e do free jazz. Esses elementos não apenas criam uma textura acústica rica, mas também acompanham com precisão as nuances emocionais da história.
O que eleva Tudo Que Imaginamos Como Luz é sua abordagem sensorial, que transcende diálogos e narrativas explícitas.
Em paralelo, a direção de Kapadia revela uma atenção quase tátil aos detalhes: o calor do toque, a umidade dos corpos e a maciez da pele são explorados pela câmera de maneira a transmitir camadas emocionais que vão além das palavras. Essa sensibilidade visual e auditiva constrói um retrato íntimo do amor e da busca por pertencimento, abordando os personagens e suas jornadas de forma respeitosa e comovente.
O longa-metragem, considerado o melhor do ano pelo jornal The New York Times e vencedor nesta semana do Gotham Award de melhor filme internacional, não apenas aceita o melodrama; ele o transforma em arte. As sobreposições poéticas das imagens e os diálogos simples, mas carregados de significado, como quando Anu (interpretada por Divya Prabha) pergunta ao namorado Shiaz (Hridhu Haroon) “Você já pensa sobre o futuro?”, exemplificam uma narrativa que usa o melodrama como ferramenta de profundidade emocional. Esse equilíbrio é raro: o melodrama aqui não pesa, mas se integra organicamente ao silêncio e à delicadeza que permeiam a obra.
A história de amor entre uma jovem hindu e um rapaz muçulmano, que poderia facilmente ser reduzida a uma alegoria política ou um manifesto sobre a tensão religiosa na Índia, é tratada com um frescor surpreendente.
Kapadia evita as armadilhas de transformar o filme em um “retrato da nação” e, em vez disso, opta por destacar os gestos quase imperceptíveis, os olhares furtivos e os sorrisos tímidos que definem o nascimento de um amor proibido. Essa escolha narrativa demonstra uma preferência clara pela dimensão humana sobre o discurso político explícito, uma decisão que amplifica o impacto emocional do filme.
O elenco é outro pilar que sustenta a visão de Kapadia. Divya Prabha traz uma intensidade emocional que captura as inseguranças e esperanças de Anu, enquanto Hridhu Haroon interpreta Shiaz com uma sensibilidade que reflete um amor contido, mas profundamente sentido. Kani Kusruti, por sua vez, entrega uma performance que complementa a complexidade da trama, enquanto Chhaya Kadam, no papel de Parvaty, oferece uma presença calorosa e ancorada. Parvaty, com sua leveza e naturalidade, atua como um elo fundamental, unindo os diferentes mundos emocionais dos protagonistas e adicionando camadas à narrativa.
No conjunto, Tudo Que Imaginamos Como Luz, também apontado como um dos dez melhores de 2024 pela revista francesa Cahiers du Cinéma, é uma celebração feminista não apenas da ternura e da intimidade, mas também das nuances emocionais que definem os relacionamentos humanos. Ele rejeita o espetáculo e a manipulação, optando por uma abordagem que valoriza a sutileza, a autenticidade e, acima de tudo, o sentimento. É um filme que nos lembra que, no silêncio dos gestos e no calor dos olhares, reside a verdadeira profundidade do amor e da conexão.
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