Existe entre cinéfilos uma crença quase mística: a de que o filme certo — visto ou feito no momento exato — pode mudar uma vida. Valor Sentimental, novo longa de Joachim Trier após o fenômeno que foi A Pior Pessoa do Mundo, parte dessa fantasia para desmontá-la com cuidado, dor e precisão. O cinema segue ali como promessa — não mais como salvação.
Trier filma o retorno de um pai ausente e as marcas que esse afastamento deixou em duas filhas. Gustav Borg (Stellan Skarsgård, extraordinário) é um cineasta envelhecido, preso à ideia de que ainda pode reorganizar os afetos por meio da arte. Em vez de enfrentar a raiva da filha mais velha, Nora, ele aposta num gesto típico de quem confunde criação com reparação: convidá-la para protagonizar seu novo filme. O erro não está no afeto — está na fuga.
O roteiro, escrito com Eskil Vogt, constrói personagens densos, cheios de vida exterior e devastação interna. Nora (Renate Reinsve) é uma atriz talentosa que se define como “80% fodida” — frase que soa como piada, mas funciona como diagnóstico. Ao contrário da irmã mais nova, ela nunca superou o abandono do pai, que deixou a Noruega após o divórcio. O ressentimento não virou discurso: virou corpo.
Reinsve confirma aqui que sua grande força está na instabilidade. Seu rosto luminoso, quase sempre à beira do colapso, sustenta uma personagem que oscila entre explosões verbais e um silêncio absoluto, duro, mineral. Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas, excelente), a irmã caçula, ocupa o outro polo: vida doméstica organizada, marido, filho, estabilidade. A proximidade entre as duas é afetuosa, mas marcada por assimetria. Quando o menino pergunta se Nora tem namorado, ela hesita — não por pudor, mas por falta de linguagem. Como explicar uma relação clandestina para quem ainda acredita que as coisas têm nome?
Jakob (Anders Danielsen Lie) surge numa das sequências mais brilhantes de Valor Sentimental. Na noite de estreia de uma peça, Nora entra em pânico, se tranca no camarim, foge. Nos bastidores, técnicos imploram, o espetáculo depende dela. Ao cruzar com Jakob, um técnico qualquer, ela o puxa para uma transa improvisada. Diante da recusa, aceita algo ainda mais radical: um tapa no rosto. Ela precisa sair da própria cabeça. Trier filma a cena menos pelo choque do gesto e mais pelo desespero coletivo que o cerca — uma coreografia nervosa em que todos esperam que Nora funcione.
O humor aqui não suaviza nada. Ao contrário, aprofunda. Trier alterna câmera trêmula nos bastidores com planos abertos da plateia em expectativa, até que o palco se acende e o espetáculo explode num rigor formal sem exibicionismo. O cinema, mais uma vez, organiza o caos — mas só até certo ponto.
Retornam aqui obsessões da “Trilogia de Oslo”, agora filtradas por um cineasta mais consciente dos limites da própria crença no cinema.
A profissão aproxima Nora de Gustav, ainda que isso não produza entendimento. Quando ele retorna após a morte da ex-mulher, traz consigo um roteiro e a necessidade desesperada de continuar relevante. Sem financiamento, encontra uma solução improvável: uma estrela americana fascinada por sua obra, Rachel Kemp (Elle Fanning). Skarsgård revela com precisão um homem que sabe performar autoridade e charme diante do olhar estrangeiro, mas que, sozinho, se mostra perdido, envelhecido, incapaz de medir o peso das próprias palavras.
Tudo conduz de volta à casa da família Borg — espaço físico e simbólico onde tudo começou. Valor Sentimental se abre, de forma reveladora, a partir da perspectiva imaginada dessa casa. Em voz over, Nora se pergunta o que aquelas paredes pensam do que testemunharam: afeto, rotina, violência, silêncio. Trier filma o espaço como memória acumulada, quase um corpo.
O filme avança com controle absoluto até que uma conversa entre as irmãs reorganiza tudo o que vimos. Detalhes antes discretos revelam um fundo mais escuro, mais traumático. Retornam aqui obsessões da “Trilogia de Oslo”, agora filtradas por um cineasta mais consciente dos limites da própria crença no cinema.
Valor Sentimental não nega a magia da arte — mas a relativiza. O cinema pode iluminar, organizar, nomear. Mas não substitui o gesto mais difícil e mais humano: sustentar o olhar do outro quando a projeção termina.
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