O cineasta Jacques Tati (1908-1982) desapontou as expectativas do pai, que sonhava vê-lo seguir seus passos, trabalhando no negócio da família: restaurar e emoldurar velhas pinturas. De certa forma, entretanto, o filho levou avante, ao menos figurativamente, esse ofício. O diretor francês entrou para a história do cinema por muitas razões, mas principalmente por redefinir a arte do enquadramento, reinventando e brincando com os limites da imagem, sempre emprestando sua assinatura inconfundível.
A quarta edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que se inicia nesta quarta-feira (10) em Curitiba, exibirá uma retrospectiva completa da obra de Tati, com seis longas-metragens e sete curtas (escritos e/ou dirigidos por ele), todos em cópias digitais. Quem acompanhá-la, terá a oportunidade de assistir, em tela grande, à obra única do diretor, que, apaixonado pelo cinema mudo, deu novos contornos à comédia visual, emprestando-lhe uma densidade muito particular e autoral, materializada na incrível riqueza de detalhes e clareza de suas composições.
Não à toa, Tati costuma ser citado, ao lado de gênios como D. W. Griffith, Serguei Eisenstein e Robert Bresson, como um daqueles poucos diretores capazes de transformar, e inovar, a linguagem cinematográfica, apontando novos caminhos para o olhar.
Antes de se tornar cineasta, Tati foi jogador de rúgbi e, na década de 1930, ingressou no mundo das artes de forma muito particular: apresentava-se em casas de espetáculo e salões musicais ao redor da França, com pantomimas, esquetes sem o uso da palavra, nas quais parodiava astros dos esportes de seu tempo. Muitos desses números teatrais foram por ele registrados em película e já encapsulavam o germe criativo de sua obra muito particular, por prescindir do uso de falas.
Tati costuma ser citado, ao lado de gênios como D. W. Griffith, Serguei Eisenstein e Robert Bresson.
Em 1947, Tati realizou o curta-metragem Escola de Carteiros, dois anos mais tarde “expandido” para o longa-metragem Carrossel de Esperança, no qual Tati, que também protagonizava suas produções, vive o papel de um carteiro que, em uma cidadezinha no interior da França, resolve adotar métodos de mecanização revolucionários por ele aprendidos em um filme norte-americano.
Já neste filme, identifica-se um tema satírico recorrente em toda a filmografia de Tati: o confronto do homem com a frieza da tecnologia moderna, cujos efeitos desumanizadores são ecos do clássico Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, do qual o francês é um descendente. Outro traço de seu estilo ao mesmo tempo sutil e elaborado é a capacidade de, por meio de elementos cênicos meticulosamente inseridos na narrativa, ir além da busca pelo riso fácil, da comédia física, estimulando o espectador não apenas a reagir, mas a construir a piada dentro de sua própria cabeça, de forma mais cerebral, ainda que sem recorrer aos diálogos.
Foram necessários mais quatro anos até que Tati realizasse seu próximo longa, a obra-prima As Férias do Senhor Hulot (1953), que apresentou ao mundo o personagem que o diretor encarnaria até o fim de sua carreira – um excêntrico, e algo arquetípico senhor francês, muito alto e arqueado pelo “peso” de um indefectível cachimbo. A figura, uma espécie de contraponto à exuberância da comédia física e/ou verborrágica que povoavam o cinema da época, foi um sucesso internacional.
Tati não esperava, ou desejava, que Hulot fosse visto, em si, como uma figura cômica. Preferia que funcionasse como uma espécie de guia capaz de revelar ao espectador o humor presente no mundo, em situações nem sempre óbvias, por vezes absurdas e desconcertantes.
Meu Tio (1958), seu longa-metragem seguinte, é uma obra transitória no percurso de Tati, que embora continue a inserir Hulot em suas narrativas, o coloca em posição mais periférica, como um ilustre coadjuvante. É sua forma de dizer que, mesmo estando presente em cena, seu cinema vai além de um percurso egocêntrico. O diretor resolve, também, evitar o uso abusivo de recursos de montagem, close-ups e enquadramentos que enfatizem em demasia a ação. Prefere deixa-la falar por si mesma.
Em Playtime – Tempo de Diversão (1967), ele radicaliza, fazendo uso de longos planos-sequência, desafiando o público a descobrir o que está acontecendo no fundo do plano e em espaços colaterais, paralelamente à ação principal, emprestando a ela novos sentidos. Toda essa liberdade, oferecida por Tati ao longo de três horas de projeção, acabou não encontrando a ressonância esperada: o filme, que chegou a ser distribuído nos Estados Unidos em uma versão retalhada de 93 minutos, foi um fracasso de bilheteria, endividando o cineasta.
Lançado em 1971, As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco, penúltimo longa de Tati, marca um retorno do diretor a seu estilo mais tradicional, e consagrado, e foi um sucesso de público e crítica. Hulot retorna à cena como um designer de uma van experimental para acampamento a conduz pelas estradas da França e da Bélgica a caminho do Salão do Automóvel de Amsterdã. O diretor confidenciou que, apesar de boa recepção, considerava o longa um retrocesso em comparação a Playtime – Tempo de Diversão, que considerava o ponto alto de sua carreira, encerrada com Parada, de 1974, realizado para a televisão. O filme, com 60 minutos de duração, é uma espécie de homenagem ao teatro, e a seu passado como artista itinerante da pantomima.
Todo esse percurso, único na história do cinema, poderá ser visto durante o Olhar de Cinema. Uma oportunidade única.
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