Muitos críticos de cinema ao redor do mundo, inclusive no Brasil, torcem o nariz para o Oscar. E não é de hoje. Para eles, o prêmio, concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas há 95 anos, não contempla parte significativa da produção autoral em língua inglesa, muito menos o que é realizado a cada ano ao redor do planeta. Os títulos que disputam as estatuetas nas diversas categorias pertencem a um recorte específico. Tudo isso é verdade, porém negar ao Oscar sua importância e ressonância me parece, por vezes, um exercício ingênuo e elitista.
Qualquer um que navegasse as redes sociais no último domingo, poderia constatar que muita gente estava ligada antes, durante e após a cerimônia da entrega dos prêmios, que ocorreu no Dolby Theater, grande casa de espetáculos situada no centro de Los Angeles, cidade onde está instalada a sede da Academia. Muitos torciam calorosamente por seus favoritos, outros reclamavam, inconformados, dos prêmios, enquanto alguns defendiam a tese de que o Oscar não vale nada. Então, por que estavam ali, afinal?
Nunca é demais lembrar que o Oscar nunca foi, nem será, um prêmio da crítica, e sim da indústria do cinema, em seus mais diversos segmentos. Entre os hoje cerca de 10 mil membros votantes, há diretores, atores, roteiristas, escritores, produtores, montadores, fotógrafos, diretores de arte, figurinistas, maquiadores, compositores, cantores, engenheiros de som, especialistas em efeitos visuais e até historiadores, teóricos e críticos de cinema.
Nos últimos anos, esse colegiado se tornou mais plural, contemplando mais mulheres, LGBTQIA+, minorias raciais, profissionais estrangeiros, mais jovens. Tudo para que deixe de ser uma premiação concedida por homens brancos, cis, de meia idade. Mas o Oscar continua a não ser um prêmio de crítica, e sim dos diversos segmentos que, em tese, constituem a indústria do cinema.
Nunca é demais lembrar que o Oscar nunca foi, nem será, um prêmio da crítica, e sim da indústria do cinema, em seus mais diversos segmentos.
Nos meses que antecedem a entrega do Oscar, que costuma ocorrer entre fevereiro e março, festivais de cinema e associações de críticos e jornalistas de entretenimento e cinema dentro e fora dos Estados Unidos distribuem seus prêmios. É evidente que, à medida em que alguns filmes, atores e atrizes, diretores, roteiristas, têm seus trabalhos reconhecidos por essas premiações, as possibilidades de que venham a ser indicados ao Oscar crescem exponencialmente. Afinal, esses formadores de opinião impactam diretamente os integrantes da academia, que darão seus votos e escolherão os vencedores da estatueta.
Dito tudo isso, como interpretar a vitória esmagadora de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, que levou sete troféus no último domingo, entre eles os de melhor filme, direção, roteiro original, atriz (Michelle Yeoh), ator coadjuvante (Ke Huy Quan), atriz coadjuvante (Jamie Lee Curtis) e montagem? Era mesmo a melhor produção entre as dez indicadas na categoria principal?
Para compreender o triunfo do longa-metragem dos cineastas Daniel Kwan e Daniel Scheinert, os Daniels, como são chamados, é preciso lembrar que o itinerário de sucesso do filme se iniciou no primeiro semestre de 2022, quando o longa chegou ao circuito exibidor nos Estados Unidos. Realizado por diretores vindos da internet, dos videoclipes, mas já premiados pelo importante Festival de Sundance, maior vitrine da produção independente nos EUA, o filme causou sensação entre os críticos, sobretudo os mais jovens.
A jornada da imigrante Evelyn Wang (Michelle Yeoh), mulher de meia idade, de origem chinesa, mãe de família, dona de uma lavanderia em dificuldades financeiras e à beira do divórcio seduziu público e crítica (ou parte significativa dela) não apenas pela história que contava, mas pela forma dessa narrativa.
Os Daniels, que também assinam o roteiro, foram na contramão do drama realista, e a mergulharam na possibilidade algo cômica da existência de universos paralelos, nos quais aquela mulher e todos ao seu redor poderiam ter outras vidas, resultantes de escolhas diferentes. Essas múltiplas possibilidades não apenas se entrecruzam na tela. Elas se atravessam, muitas vezes em um ritmo frenético, insano, confuso, em um exercício formal que desagradou muitos, mas encantou outros tantos, que, entusiasmados, fizeram dele o filme do ano. O que não significa, necessariamente, que Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo seja uma grande obra cinematográfica.
Somente o tempo, e apenas ele, será capaz de dizer, daqui a alguns anos, a relevância, e, principalmente, atestar a sua ressonância em um âmbito mais amplo, profundo e menos midiático.
Fato é que os Daniels bateram Steven Spielberg (de Os Fabelmans), Todd Field (de Tár) e Martin McDonagh (de Os Banshees de Ininsherin), que, para muitos, fizeram filmes melhores, mais artísticos e consistentes. E mais: nenhum desses longas-metragens foi premiado, saíram de mãos abanando. Isso diz mais sobre o Oscar e os integrantes Academia do que, propriamente, a respeito do cinema contemporâneo.
Venceu, a meu ver, o espírito do tempo, o zeitgeist. Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é, sem sombra de dúvida, o filme-evento de 2022, uma obra inventiva que polarizou a opinião pública, a crítica, e colocou a indústria em movimento, não se sabe bem ainda em que direção. É muito, devo reconhecer. Voltaremos a falar sobre ele daqui e cinco, dez anos, e será interessante ver o que acontecerá com os discursos sobre e em torno dele.
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