Os pensamentos se acumulam enquanto o tempo passa.
Se aproxima cada vez mais a hora de acordar sem nem mesmo ter dormido.
O estado mental é de intensa atividade, mas quanto mais ele se inquieta, mais distante fica o sono.
Assim, a insônia toma conta da noite e não se sabe como agir diante dela.
Na crônica “um milhão de carneirinhos”, da escritora curitibana Adriana Sydor, a opção é manter uma relação cordial com a indesejada visitante. Incluído no livro Adriana Sydor, toda prosa (Travessa dos Editores, 2015), o texto apresenta uma conversa da autora com a insônia a fim de tentar convencê-la a deixar a casa e visitar outras pessoas que necessitam da sua presença.
Ainda que seja incômoda, a hóspede é tratada com respeito, uma vez que outros métodos já foram testados.
“me cuido sozinha e melhor longe de você.
veja, tenho cama agradavelmente perfumada, quarto quentinho, música suave e bem baixinha; tenho também uma dúzia de sonhos para sonhar, o corpo que pede descanso, os olhos que queimam; fiz minha parte pela melhoria do mundo, trabalhei, fui solidária, lavei a louça e varri a casa. me falta a merecida hora do descanso, do descaso.
acaba sendo muito mesquinho de sua parte querer insistir aqui, nessas conversas que sempre começam quando já é, e ainda não é, dia seguinte.”
Como pode ser visto, há todas as condições necessárias para que o sono estivesse presente, mas isso não ocorre, fazendo com que a vigília seja vista como algo incomum, uma vez que o próprio tom adotado no discurso revela calma, diferentemente da maioria dos casos em que os pensamentos em ebulição são francos inimigos do adormecimento.
‘Então traga-me um abraço apertado, um verso noturno / Mas não traga-me um fracasso enjoado, um sono profundo / Eu sei que o necessário é relativo e que essa história corra / Veja meu amigo que maldade se enxerga no escuro / Com a vida que levo na pele revejo o que penso / É tenso, mas compenso, faço parte dela, projeto o futuro / Assista o que assisti em câmera lenta / Enquanto me deparo com a sessão de terapia ao terapeuta’ Haikaiss – Insomnia
É isso que se vê na música “Noites de Insônia”, clássico do rap nacional em que o grupo MRN, formado então por Nill, Júnior e Tio Fresh (que mais tarde integraria o SP Funk), versa longas digressões que não se atém à situação presente, mas se estendem à vida.
Reproduzindo o tom melancólico de uma noite em claro, a música utiliza 7 minutos para tratar de um passado glorioso da juventude em oposição ao presente, período no qual o eu lírico convive com pessoas que tentam lhe fazer mal. Além disso, há a falta causada por uma mulher que partiu sem se despedir, assim como algumas figuras famosas e também do círculo particular que levam a canção a apresentar reflexões sobre a morte.
Esse tom de abatimento e a difusão dos pensamentos que opõe a canção à crônica são vistas logo no início da obra: “São três da madrugada / Sinto que minha mente está totalmente atravessada / Merda da balada constantemente me acaba / não consigo dormir, com uma insônia danada / Ansiedade que me abala / Conto os minutos no relógio, tempo não passa / Reflito e acho que vou explodir, para onde ir? / O que fazer? Não sei / Me acalmo e deixo o pensamento correr / Vou pensar nessa vida que está foda de se viver”.
Mas, se na música do MRN a insônia é uma oportunidade para refletir sobre a vida, no recente clipe do grupo Haikaiss ela é um reflexo da vida.
Dividido em duas partes, o clipe que também tem mais de 7 minutos é, na verdade, a reunião de duas músicas: “sem convidados” e “imnsonia”, que embora sejam distintas podem ser vistas uma como reverberação da outra.
Isso porque na primeira parte os MCs Pedro Qualy e SPVIC aparecem cantando para a câmera com imagens em preto e branco junto de animais repulsivos (aranha, cobra e iguana), enquanto que no segundo trecho se veem vidas rotineiras que estão ligadas entre si.
Assim, a relação entre as duas partes do audiovisual pode ser vista como uma sendo consequência da outra já que na primeira um ambiente interno, que conta com bichos escrotos, é usado para ilustrar uma subjetividade, que pode ser vista refletida na vida dos personagens que aparecem no segundo fragmento.
Dessa forma, o ser que se sente tão vão porque a festa acabou e o salão apagou (isso te lembra um certo José?) na primeira interpretação incide sobre as pessoas que sofrem com a insônia causada pelo excesso de trabalho da vidinha americana e todas as dependências exploradas na segunda fração.
E se na música do MRN uma figura feminina deixou um vácuo, na música do Haikaiss a própria insônia se configura como sendo desse gênero ao incorporar a musa da inspiração e, ao mesmo tempo, ser o vício que mantém a vida (Da uma até às três se fantasia de inspiração / Me guia até às quatro, pra lembrar que é outro dia / Tão vagabunda, ela vicia sem motivo / A vagabunda que vem me mantendo vivo / E ela é boa com planos, pois assim começamos / A gerar resultados sem que saibamos / que a energia que mantém os manos dia após dia / É o que gera a safra dos supertoscanos).
Com uma aparição mais extensa e um número maior de versos nessa segunda parte do clipe, o MC Spinardi também vê a insônia como inspiradora, mas a enxerga também como algo que pode trazer sentimentos ruins, finalizando a música com a presença do eu lírico no terapeuta.
Assim, os diferentes posicionamentos diante da insônia nos mostram que, mesmo que cause repulsa, ela ainda é mote para as mais diversas obras.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.