O mais recente filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar pode ser resumido de forma bastante simples: uma filha abandona a mãe.
Mas, é claro, podemos resumir qualquer história dessa maneira rasa, mesmo as maiores. Exemplo: um sujeito quer voltar pra sua terra depois de 20 anos e, após o término de uma guerra, tem que escapar de criaturas fantásticas e da perseguição do deus Poseidon, configurando uma verdadeira Odisseia.
Por outro lado, um leitor ou espectador um pouco mais atento sabe que o que importa não é o enredo em si, mas como ele é contado.
E esse é o grande ganho de Julieta, adotando uma narrativa que mantém frequentemente a tensão para prender a atenção, criando arcos narrativos nos quais, quando um mistério é resolvido surge outro e outro e outro, fazendo com que o espectador sempre esteja se perguntado “como” ou “por quê?”.
Sem explorar temas como a sexualidade, presente em Tudo Sobre Minha Mãe, Má Educação ou A Pele que Habito, por exemplo, Julieta opta por um tema “mais família”, diante do qual o público tende a apresentar uma maior identificação, uma vez que todos temos algum tipo de sentimento materno, o que faz com que o filme não tenha a força para ser o maior de Almodóvar, mas ao carregar a sua marca se torna, acima de tudo, uma obra de Pedro Almodóvar.
Fazendo com que tentemos entender a todo momento os motivos do afastamento da filha e torçamos para que o desfecho seja positivo, a película desperta uma questão materna explorada em diversas músicas do rap nacional que colocam a genetriz sempre em uma posição de exaltação, seja demonstrando gratidão ou o arrependimento diante dela. É o que se vê na clássica “Desculpa Mãe”, do Facção Central, “Mãe”, de Emicida, ou “Benção”, de Flávio Renegado.
Somando-se ao grupo, Dexter recentemente divulgou “Me Perdoa”, na qual conta com a parceria do cantor Péricles para demonstrar esses dois sentimentos presentes nas demais músicas, acrescidos da sua vivência de ex-presidiário, o que a diferencia das demais e a aproxima do diretor vencedor de quatro prêmios do Festival de Cannes ao tratar do mesmo tema do afastamento, mas pelo outro lado.
Na letra, o filho fala sobre o seu arrependimento pelos atos criminosos, que levaram sofrimento a ele e a progenitora, e os fizeram cumprir juntos a pena do distanciamento.
Essa falta se demonstra também por meio da canção ao pontuar que há sentimentos que não podem ser transmitidos por meio de palavras. Isso pode ser visto, por exemplo, quando o rapper fala do tamanho do afeto da genitora: “Se ela pudesse ficaria no meu lugar /Amor de mãe impossível de explicar, não dá”. Adiante, há a assunção de que certos aspectos são até mesmo difíceis de entender (“Deixei de agir e pensar com a razão / E me deixei levar pela emoção / Ponto final não quis nem saber / Certas fitas na vida é complicado de compreender”), enquanto o silêncio também assume o seu papel no momento em que o filho do detento pede que ele retorne ao seio familiar: “’papai eu amo muito você / Volta pra casa comigo / A mamãe quer te ver’ / O silêncio conspira a meu favor / Dizer o quê? Me ajuda senhor / Fiquei sem ação, sem nenhuma explicação”. Além disso, assim como em Julieta, que traz na película uma mulher que nunca esquece a sua cria, “Me Perdoa” demonstra a importância dessa figura única ao dizer que “…se não fosse minha mãe, tinha ficado sozinho / Sem nenhum motivo pra trilhar meu caminho”.
Quem disse que homem não chora? / Em dia de visita qualquer hora é hora / O sofrimento da coroa que entristece / Isso é o pior, o verdadeiro teste. Dexter – ‘Me Perdoa’
Da mesma maneira que o reconhecido rapper, o MC curitibano Dow Raiz também retrata essa ausência da mãe e das palavras na música e no clipe de “Mãe”. O que ele diz na letra (“o vazio dessa casa chega a doer na alma”) é compensado no videoclipe com a presença física materna, recebida no lar por meio de uma festa. Já nos vocábulos Dow demonstra o mesmo lapso que Dexter: “mas, que falta de você / saudades de você / queria tanto te ver aqui dentro / Não tem palavras que expressem esse sentimento”.
Assim, enquanto que nas duas músicas há a admissão da incapacidade da fala, o filme, por trazer também imagens, consegue possibilitar essa sensação de privação.
Desse modo, as obras ora se aproximam, ora se afastam. A iminência, natural, se dá por meio do tema, quase universal, enquanto que o distanciamento acontece por meio da forma, dos recursos usados, e principalmente pelo fato de enquanto Almodóvar trazer uma trama inventada e bem contada, tanto ao ponto de conseguir demonstrar o subjetivo, Dexter e Dow fazem um relato pessoal, vivido e sentido diretamente por eles.
Juntos, os pontos de vista se complementam ao relatar o tamanho da ausência.
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