Se Capão Pecado fez com que Ferréz tivesse sua obra reconhecida no Brasil, Manual Prático do Ódio mostrou porque ele é um dos principais autores da literatura marginal no país. Já Deus Foi Almoçar provou a sua capacidade de criar obras admiráveis mesmo que não se passem na periferia.
O motivo que faz com que o seu segundo romance, lançado em 2003 e reeditado em 2014 pela editora Planeta, apresente um enorme salto de qualidade se deve à forma narrativa rápida e fragmentada com que apresenta a história de um assalto a banco.
Dessa forma, os personagens Lúcio Fé, Aninha, Régis, Celso Capeta e Neguinho da Mancha na Mão são apresentados de maneira individual sem uma transição direta entre si, trazendo cortes rápidos e secos que tornam a narrativa ágil e instigante.
Tal característica se torna ainda maior pelo fato de o enredo se apresentar de maneira não linear, contando histórias paralelas e fora de cronologia, mas que terminam por se unir, trazendo sentido e complexidade à trama.
Esses aspectos fazem com que o livro se aproxime bastante de uma narrativa cinematográfica e faça lembrar especialmente Pulp Fiction – Tempo de Violência. Isso porque a película de 1994 conta individualmente a história de dois assassinos, um boxeador e um casal de assaltantes, relatos que se amarram quando são retomados os fatos que aconteceram antes e depois das cenas apresentadas inicialmente.
Mas esse não é o único aspecto que aproxima as duas obras. Outra propriedade presente em ambas é a presença da violência, marca característica do diretor Quentin Tarantino e que também faz com que os personagens do escritor paulistano tratem a morte hostil como algo banal.
Assim, o que antes era feito por necessidade, ambição ou vingança passou a se tornar comum para personagens como Nego Duda, que pichou no muro da própria casa um verso da música “Isso aqui é uma guerra” do grupo Facção Central (“A fome virou ódio e alguém tem que chorar”) e passou a usá-lo como inspiração. Já o motivo principal para Régis era o dinheiro, embora a queda dos corpos no chão o trouxessem prazer:
“Seu negócio era mesmo o dinheiro, ver o tombo de alguém só quando necessário, só apertava para ver alguém morrer se isso lhe rendesse um qualquer, lembrava todas as quedas das pessoas que havia matado, muitas ele nem lembrava o rosto, mas os tombos ele guardava todos em sua memória, uns levantavam poeira, outros caiam secos, e o barulho ele achava muito bom”.
Assim, o que antes era feito por necessidade, ambição ou vingança passou a se tornar comum para personagens como Nego Duda, que pichou no muro da própria casa um verso da música “Isso aqui é uma guerra” do grupo Facção Central e passou a usá-lo como inspiração.
E foi dessa forma que logo no final do segundo capítulo Régis foi impulsionado pelo dinheiro e mostrou porque Ferréz é considerado o romancista da traição, encerrando esse arco narrativo de maneira impressionante e bastante significativa para a trama.
Essas características se dão especialmente por conta da maneira fria com que ele age, traço também presente na cena em que o personagem Brett (Frank Whaley) recebe a visita dos matadores Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta), esse que momentos depois ouve o questionamento se “O que é proibido não é mais emocionante?”.
A frase proferida por Mia Wallace (Uma Thurman), a esposa de Marsellus Wallace, ecoa momentos depois quando ela sofre uma overdose e faz com que Vega tenha que agir de maneira desesperada para salvar a sua vida.
Momento semelhante de tensão, em que a vida está igualmente em risco, se dá em Manual Prático do Ódio no momento em que o Mágico aguarda os seus comparsas em um bar e um homem conhecido como Alemão Carreteiro se revela um justiceiro, dando indícios de que irá matá-lo. Mágico, no entanto, está desarmado, uma vez que a sua função no bando está ligada ao planejamento. Assim, ele tenta ligar para alguém que possa o salvar. Régis, no entanto, está ocupado com o assalto e não atende.
E se nessa ocasião o suor escorre de tensão, há momentos em que o motivo é o tesão. Por isso, o prazer oral que o boxeador Butch Coolidge (Bruce Willis) proporciona à sua namorada Fabienne (Maria de Medeiros) se assemelha ao que o Neguinho da Mancha na Mão faz com a sua namorada Eduarda. A proximidade, no entanto, não se dá apenas no ato em si, mas sim no fato de ambos terem a intenção de construir uma nova vida ao lado da companheira, o que pode ser interpretado como uma forma de cumplicidade na visão do escritor e do diretor. Talvez a ideia que se queira passar é a de que a prática do sexo oral do homem na mulher só é executado quando há uma relação que se quer perpétua.
Os sentimentos de Buch, aliás, serão complicadores quando ele arrisca a sua vida por conta de um relógigo que ganhou do pai, impulso enternecido que também faz com que Régis vá ao encontro do seu rival.
Desse modo, os planos do assalto a banco na obra literária podem não sair como planejado, da mesma maneira que o roubo na lanchonete registrado no longa-metragem. Mas esses podem ser momentos de redenção e escape para um dos personagens das obras.
A diferença entre as duas está no fato de a definição de “Pulp Fiction”, feita no início do próprio filme, estabelece-lá como algo sensacionalista. O Manual Prático do Ódio, por outro lado, embora fictício, reúne muito da realidade.
MANUAL PRÁTICO DO ÓDIO | Ferréz
Editora: Planeta;
Quanto: R$ 17,90 (272 págs);
Lançamento: Janeiro, 2014.
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