Certa vez, em sua participação no programa Ensaio, da TV Cultura, os Racionais MCs foram questionados sobre a origem do nome do grupo. Respondendo à questão, Mano Brown declarou que, na verdade, eles deveriam se chamar “Emocionais”.
Para aqueles que conhecem o grupo de maneira superficial e que têm a ideia de que as canções trazem apenas violência, a declaração parece ter sido à toa.
É compreensível que a visão seja essa para quem não tem cumplicidade, não sofre com a desigualdade social (embora todos sofram com maior ou menor intensidade), e não sentiu na pele os 111 tiros disparados por policiais em um carro que tinha cinco jovens na zona norte do Rio de Janeiro, em novembro de 2015.
O Supremo Tribunal de Justiça concedeu aos policiais o direito de responder em liberdade.
O número de tiros disparados, 111, foi o mesmo de vítimas assassinadas no massacre do Carandiru, em 1992.
74 policiais foram condenados, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou os julgamentos em 2016.
Não é coincidência.
Falando em números, tornou-se clássica a introdução da música “Capítulo 4, Versículo 3”, em que Primo Preto relata: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo”.
Mas se esses números ainda não são alarmantes para alguns, a peça Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, exibida no Festival de Curitiba, vai muito além e apresenta o relato de quem perdeu um filho, um marido ou um parente nessa execução sumária que dizima a população negra no Brasil. Mais do que isso, o espetáculo consegue fazer com que o público, mesmo que branco e que não tenha sofrido essas consequências, sinta um pouco dessa dor e entenda a razão de as letras dos Racionais trazerem muito mais emoção do que razão.
Tributária à obra do grupo paulistano, a montagem do Coletivo Negro conta com uma atuação visceral de Jé Oliveira, que também idealizou, dirigiu, escreveu e realizou uma pesquisa ao longo de um ano entrevistando 12 pessoas do sexo masculino com o objetivo de construir uma imagem do homem negro periférico. O resultado de tudo isso é uma obra teatral que conta com trechos de músicas do principal grupo de rap do Brasil, sendo levadas ao palco pelas mãos do DJ Tano (Z’África Brasil), que compõe o elenco ao lado de Cássio Martins (baixo), Fernando Alabê (Percussão e Bateria), Mauá Martins (Pianos e MPC) e Melvin Santhana (Guitarras, Violão e Voz).
Tributária à obra do grupo paulistano, a montagem do Coletivo Negro conta com uma atuação visceral de Jé Oliveira.
E, claro, se tem música, tem alegria e swing. Por isso, a declamação e as músicas cantadas por Jé ganham também tons suaves que fazem o público bater palmas ao som da black music e da musicalidade característica das religiões de matriz africana.
E se esse é o som que ditou o ritmo da juventude dos entrevistados, na infância o que rolava era bola. De futebol, de basquete ou qualquer outra que promovesse a diversão na periferia, local onde os meninos viram homens mais cedo mesmo sem contar com referências masculinas muito próximas.
Isso porque, enquanto a figura da mãe e da avó se fazem bastante presentes no espetáculo, a paternidade aparece, em um dos seus raros momentos, somente com sentido punitivo.
Fora do ambiente doméstico, é nas ruas onde ocorre as primeiras descobertas, sejam as ruins, como o primeiro contato com as armas e as drogas, ou boas, como as idas até o centro quando o barraco começa a ficar pequeno e o narrador passa a conhecer o mundo. Essa experimentação também ocorre por meio das palavras de Malcom X, usadas com ostentação no metrô e que ajudaram a formar a sua consciência política.
Manifestações desse cunho, é claro, também estiveram presentes no espetáculo, indo além de um “Fora, Temer!”, mas também questionando o público sobre o que poderia ser feito diante da situação atual do Brasil. Já o juiz Sérgio Moro não teve seu nome citado explicitamente (“Não vou nem pronunciar o nome, porque estamos na terra do homem né!?), enquanto à democracia foi dedicada uma música: “Ela Partiu”, de Tim Maia.
A política aliás, foi o que deu o tom no final do espetáculo, quando foi estendida uma faixa com os dizeres “O nosso júri é racional, não falha. Não Somos fãs de canalha. Morô?”, trecho de “Júri Racional”. Além disso, o elenco surgiu à frente do palco simulando o clipe de “Mil faces de um homem leal”, homenagem dos Racionais a Marighella, e trouxe fuzis que disparavam a mensagem “Poder ao Povo”.
Antes disso, a interação com o público se deu no momento em que foi servida farinha com açúcar na cena em que o relato tratava da alimentação. De maneira emotiva, uma criança pedia para que sua avó o ensinasse a fazer frango com quiabo e bolo de cenoura. A voz em off de uma senhora dá a receita enquanto o protagonista se vestia de mulher. O assunto é finalizado com um diálogo:
– Tia, tem pão?
– Não.
– Mãe, tem pão?
– Não, só açúcar com farinha.
Se essa é a refeição que compõe a sustança de meninos e homens, por outro lado, o espetáculo mostra o quanto os Racionais MCs promovem a sustança da alma negra por meio de palavras e músicas.