A carreira de Tod Browning e o cinema surgem mais ou menos na mesma época. O diretor de clássicos como Drácula (1931) e Monstros (Freaks, 1932) fugiu de casa ao 16 anos, em 1986, para se juntar ao circo. Performático, ele cantava, escapava de correntes ao estilo Harry Houdini e virava a noite enterrado em caixões para maravilhar o público.
Na virada do século 20, como revela David J. Skal no livro The Monster Show, os espetáculos circenses eram sinônimos de estranheza. Apresentações com anões, pessoas deformadas e talentos excêntricos eram sinônimos de sucesso. O ato de desafiar a morte também – pense na finalidade de assistirmos a um domador que irrita o leão com um chicote.
Talentoso e versátil, Browning foi recrutado em meados de 1913 para a indústria do cinema. O mentor era D. W. Griffith, pioneiro no desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica nos Estados Unidos. A sétima arte não era lá grande coisa nesse período, mas servia para pagar as contas. O artista de circo despontou como ator e não demorou a assumir a cadeira de direção.
Depois de comandar dezenas de produções (e participar de um traumático acidente de carro), seu primeiro grande sucesso foi Trindade Maldita (The Unholy Three, 1925). Além da parceria com Lon Chaney, “o homem de mil faces”, o filme traria as marcas da contribuição mais efetiva do cineasta: sua visão de um país de valores invertidos, que despreza o diferente e cria monstros pela incapacidade de aceitação. Na trama, um ventríloquo, um anão e um halterofilista são expulsos de um circo e decidem roubar um comerciante.
O tema voltaria com força em O Monstro do Circo (The Unknown, 1927), em que Chaney interpreta um fugitivo da polícia que se disfarça como um homem sem braços para participar de uma companhia circense. Com medo de que a mulher que ama o deixe quando a verdade se revelar, ele decide se auto-amputar. O problema é que ela se apaixona por outro, o que gera uma fúria por vingança no protagonista.
Chocante mesmo para os padrões atuais, Monstros serviu como influência da formação de vários olhares semelhantes sobre os Estados Unidos.
Apesar de flertar com esse universo em outras produções, nenhuma seria tão contundente em apresentar o estranho olhar de Browning sobre os Estados Unidos quanto Monstros. Ainda no rescaldo do sucesso de Drácula, o diretor decide voltar ao circo e cria um dos filmes mais controversos da história do cinema. A narrativa foi baseada em um conto de Clarence Aaron “Tod” Robbins, que também inspirou Trindade Maldita.
Com uma fotografia belíssima, o filme coleciona aparições de inúmeras pessoas com características corporais únicas. Há hermafroditas, homens e mulheres sem braços e pernas (chamado de torso humano), microcéfalos (nomeados cruelmente de cabeças-de-prego) e gêmeas siamesas. Browning os filma de maneira simpática. Aliás, boa parte do longa-metragem passa longe do horror, pois o diretor se entrega às estranhezas do universo que retrata em suas câmeras.
Os verdadeiros monstros morais da trama são dois amantes, que decidem enganar um anão depois que ele pede a mão da mulher – sem saber que ela estava em outro relacionamento. Ela aceita o matrimônio por dinheiro, com planos de envenenar o noivo em seguida. Na noite do casamento, os amigos dele a recepcionam cantando “Nós a aceitamos – uma de nós!” (We accept her – one of us!). O hino vira uma ameaça, brutalmente concretizada nos minutos finais da obra, depois que ela humilha todos em um jantar.
Chocante mesmo para os padrões atuais, a obra serviu como influência da formação de vários olhares semelhantes sobre os Estados Unidos. A fotógrafa Diane Arbus, por exemplo, foi profundamente afetadas por Monstros. Sua perturbadora série de imagens de pessoas deformadas, de acordo com David J. Skal, são um reflexo da experiência da artista com o título.
O mesmo vale para o escritor Ray Bradbury, que via os filmes de Browning quando criança, e escreve Algo Sinistro Vem Por Aí. O livro serviria de fonte para a adaptação No Templo das Tentações (Something Wicked This Way Come, 1983), de Jack Clayton (leia mais). Não por acaso, a representação do circo como espaço sombrio e renegado de convivência humana se repete.
A influência mais recente desse olhar sobre a cultura norte-americana deixada por Monstros é a quarta temporada de American Horror Story, intitulada de Freak Show. Ao emular diversos elementos da produção de 1932, o arco narrativo do programa de Ryan Murphy reconstrói a América de Tod Browning em toda a sua contradição. Além de recusar personagens opacos e jogar na cara do público deformidades sociais e corporais que costumam ficar debaixo do tapete, a atração ainda apresenta um amargo final feliz. É jogo de aparências, como no circo, que não nos ilude do espetáculo de horror que estamos pagando para ver.