Uma das primeiras imagens de violência no cinema nacional a me impactar de verdade é o momento em que o personagem de Otávio Augusto mata, à queima roupa, um jovem que furtou um walkman em Central do Brasil (1998). A serenidade com que o sujeito retorna à estação de trem depois de atirar em um adolescente da periferia do Rio de Janeiro foi um banho de água fria no meu imaginário sobre a nossa nação.
Vi o filme do Walter Salles no cinema, com 11 anos. Meu conhecimento da filmografia brasileira na época não ia muito além dos longas-metragens da Xuxa e dos Trapalhões. Coincidentemente, naquele mesmo período uma professora de História apresentou para minha turma O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto; Chico Rei (1985), de Walter Lima Jr.; e Guerra de Canudos (1996), de Sérgio Rezende.
Esse contato com diferentes experiências cinematográficas tão cedo deixou em mim a impressão de que os nossos filmes – quando não se tratavam de comédias ou narrativas para crianças – eram espelhos fiéis da nossa violência cotidiana. As dramatizações, nem sempre ficcionais, agiam como registros da nossa vida diária, emulando noticiários e livros históricos.
O Brasil é um país marcado por imagens violentas, muitas oriundas da desigualdade. Claro que nem todo filme nacional carrega esse imaginário do horror realista e natural, mas as diferenças de classe estão sempre por ali no nosso cinema, à espreita nas paisagens que aparecem na tela.
No horror “artístico”, ficcional e fantástico, essas tensões sociais se tornam alegorias imagéticas. Não por acaso, o gênero está especialmente em voga agora, num momento em que as elites financeiras da nação bradam para extinguir direitos de massas trabalhadoras e aplaudem o genocídio dos mais pobres.
No horror artístico, ficcional e fantástico, essas tensões sociais se tornam alegorias imagéticas. Não por acaso, o gênero está especialmente em voga agora, num momento em que as elites financeiras da nação bradam para extinguir direitos de massas trabalhadoras e aplaudem o genocídio dos mais pobres. No exagero, na farsa e no fantástico, atingimos uma espécie de catarse que se assemelha a um grito de revolta.
Por isso, nossa identificação com as pessoas do vilarejo de Bacurau, no filme homônimo de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, parece um ato de resistência. Conseguimos nos colocar nos pés daquela população, caçada por estarem isoladas e sem recursos no interior de Pernambuco. Da mesma forma, vemos com alívio o destino dos personagens de Murilo Benício em O Animal Cordial (2018), de Gabriela Amaral Almeida, e de Jackson Antunes em A Mata Negra (2018), de Rodrigo Aragão. Os males que nos atormentam no dia a dia são extirpados a olhos vistos na fantasia.
Talvez um dos filmes de horror artístico recente que lide de forma mais didática com essas tensões geradas pela exploração predatória das elites nacionais sobre os grupos mais pobres seja O Clube dos Canibais (2018), de Guto Parente. A obra, que chega às salas de exibição nesta quinta-feira, conta a história de um casal que mata os empregados em um ritual sexual para poder transformar o que sobra do corpo em carne para o churrasco.
A mulher, vivida por Ana Luiza Rios, passa os dias interagindo com os funcionários de sua mansão, amargurada porque o marido, interpretado por Tavinho Teixeira, a deixa de lado para participar dos rituais do tal clube do título. Os dois agem como se fossem sujeitos de bem, que nunca fazem mal aos seus semelhantes e, de forma alguma, vêem a si mesmos como assassinos. Os hábitos canibalísticos são banalidades cotidianas, necessárias para o prazer.
Permeado por um delicioso e escrachado senso de humor, a narrativa de Parente é uma enorme metáfora sobre como os ricos devoram os pobres no Brasil. Em alguns momentos, a trama descamba para o humor sangrento. O riso substitui o choque de cenas como a de Central do Brasil descritas no início deste texto, mas nada disso nos impede de sair como um gosto amargo do cinema. Afinal, sabemos que, assim como no filme do Walter Salles, a tela do cinema se mantém como um espelho da nossa realidade. A única diferença é que o reflexo está com a aparência mais divertida do horror artístico.