Como nenhum outro gênero, o horror frequentemente nos ajuda a pensar sobre a condição do cinema fantástico enquanto um espaço de interação com a realidade. O escritor Stephen King ambienta suas histórias em cenários e espaços físicos que conhece, pois isso o ajuda a estimular o medo no público. As produções da franquia Invocação do Mal são mais assustadoras porque, supostamente, adaptam histórias reais de fantasmas.
O consumo de uma narrativa de ficção está sempre condicionada à nossa percepção do mundo material. Fazemos distinção entre fatos e invenções a partir do que vivenciamos no nosso cotidiano. Justamente por isso, o horror só funciona quando conseguimos sentir os pés no chão da realidade e olhamos para os pesadelos e delírios projetados na tela.
Há algum tempo, ando apegado à ideia de que existem lugares de contato do imaginário em que confrontamos a fantasia e o real. No seriado Além da Imaginação, esse espaço é chamado de zona do crepúsculo (twilight zone), pois é onde vamos parar enquanto o programa nos é exibido.
Uma história de horror, além de nos entreter, também nos dá elementos para pensar o mundo à nossa volta.
Às vezes, assistimos a versões desses ambientes nos filmes, como o hotel Overlook, de O Iluminado (1980), e o laboratório do personagem de Jeff Goldblum, em A Mosca (1984). Em ambos os casos, os elementos fantásticos tensionam as fronteiras do real, apresentando situações possíveis, nas quais reconhecemos personagens, emoções e objetos.
Recentemente, o longa-metragem Aniquilação (2018) também parece interessado em discutir limites da fantasia por meio do espaço físico em que se passa a trama. A história acompanha uma equipe de expedição formada por mulheres e liderada por uma bióloga vivida por Natalie Portman, que entra em uma redoma, da qual ninguém retorna. O lugar, chamado de o Brilho, foi criado por um meteorito alienígena que altera a essência física de plantas, animais e humanos.
Dirigida por Alex Garland, do excelente Ex-Machina: Instinto Artificial (2015), a obra foi adaptada de um romance de ficção científica escrito por Jeff Vandermeer (leia mais) e teve seus direitos vendidos com exclusividade para a Netflix em boa parte do mundo.
Cheia de sentidos abertos, o título levanta uma série de questionamentos sobre vida, morte, beleza e horror. Talvez não resolva muito bem os aspectos existenciais, mas certamente oferece elementos para refletirmos sobre como a fantasia se entrelaça com o real.
O tal Brilho é um espaço de criação. O novo, como diz a personagem de Natalie Portman em certo momento, aparece diante de um fluxo de transformação entre o real e o possível. Um urso é fisicamente alterado ao incorporar elementos humanos em sua forma – numa mutação que lembra muito a do monstro do filme Semente do Diabo (1979).
A criatura é um remanescente do que conhecemos com o imaginado. No fantástico, seria um eco do real – como a aparência física de um cadáver que volta à vida uma história de zumbi. Embora seja um personagem diferente, ele carrega rastros que o vinculam com nossa própria ideia de um ser humano vivo. A ficção precisa deixar essas pegadas para que possamos nos relacionar melhor com o que foi criado.
Em um certo momento da trama, as integrantes da expedição também passam por mutações físicas e subjetivas. Comportamentos e interesses se alteram conforme as protagonistas avançam em direção ao tal meteorito, que está dentro de um faro. Elas mudam a maneira de pensar o mundo, graças ao contato com o estranho.
De alguma forma, essa reação das personagens parece emular nossa própria reação com a ficção fantástica. Uma história de horror, além de nos entreter, também nos dá elementos para pensar o mundo à nossa volta. Logo, tem potencial para alterar nossa essência e mudar o modo como pensamos o mundo.