D epois de circular por festivais dentro e fora do Brasil, o filme brasileiro Sem Seu Sangue chegou na semana passada aos cinemas comerciais de diversas cidades do país. Dirigida por Alice Furtado, a produção foi um dos destaques da Quinzena dos Realizadores do 72º Festival de Cannes e recentemente foi adquirida pela Netflix.
A trama acompanha uma jovem adolescente, Silvia (Luiza Kosovski), que se apaixona por um rapaz hemofílico de sua escola, Artur (Juan Paiva). Quando ele sofre um acidente e morre, ela precisa lidar com o luto irracional e começa a estudar antigas tradições místicas que podem trazê-lo de volta.
Em entrevista exclusiva à Escotilha, Alice comentou um pouco sobre os significados da obra e sua expectativa para a chegada do filme à Netflix, o que deve ocorrer até o fim do ano. Leia abaixo:
Escotilha » Durante boa parte de Sem Seu Sangue, o horror demora a aparecer. O final, no entanto, é inegavelmente horrífico. Como você concebeu essa estrutura do filme?
Alice Furtado » Para mim, mais importante do que contar a história era poder navegar pelo turbilhão de sensações vividas pela Silvia, a protagonista. Havia essa vontade de compartilhar com ela a desorientação, uma certa desconexão da realidade e sua visão fragmentada das coisas. A estrutura se baseava muito numa ideia que está martelada no título internacional do filme, e que infelizmente não ficava bom numa tradução literal, mas que são três maneiras de se estar “doente”. Em uma primeiro momento, ela adoece de amor – aquela experiência arrebatadora que nos tira de uma rotina funcional e pragmática -, depois a doença se apodera do corpo dela, com a somatização da perda, e aí mergulhamos na obsessão, que é o terceiro estado “patológico” da Silvia. Mas a ideia é que essa jornada aconteça de maneira meio hipnótica e espiralesca, por isso acho que o final acaba chegando de forma surpreendente.
E o que significa o título brasileiro para você?
O título fala muito sobre a teimosia da Silvia diante da falta de controle que temos sobre o destino. O sangue do Artur corre livremente, assim como o destino escapa das nossas mãos, mas ela não aceita.
Li que o Tourneur tem uma influência importante na concepção inicial de Sem Seu Sangue. Em que medida o diretor influenciou na obra?
Foi uma forte influência, sobretudo para a segunda parte do filme. Todo o seu cinema, mas em especial o filme I walked with a zombie, que está lá nas origens do gênero do zumbi e que me marcou muito desde a primeira vez que vi. É um filme que fala sobre vida e morte de uma maneira que acho muito forte e original, e que para mim tem essa característica hipnótica, que eu queria trazer também para o Sem Seu Sangue. Acho que o mar cumpre um papel importante nos dois filmes e temos alguns planos que são uma espécie de homenagem, mas também precisava atualizá-lo a um contexto atual. Hoje consideraríamos problemática a forma como o filme apresenta aspectos religiosos e culturais do Haiti, por isso foi importante, mesmo trazendo esses signos (que estão na origem da chegada dos zumbis à cultura pop e ao cinema), deixar claro que houve uma apropriação cultural problemática e que esses signos já nos chegam de maneira enviesada e filtrada pelo olhar/exploração do colonizador.
Para mim, mais importante do que contar a história era poder navegar pelo turbilhão de sensações vividas pela Silvia, a protagonista. Havia essa vontade de compartilhar com ela a desorientação, uma certa desconexão da realidade e sua visão fragmentada das coisas.
Que outras obras e autores estavam contigo no momento da concepção do filme?
Sem dúvida Stephen King com seu Cemitério Maldito. Queria que o espectador pudesse ter com a Silvia uma relação parecida com o protagonista desse livro, de torcer para que ele consiga fazer o que quer/precisa fazer, mesmo sabendo que o resultado provavelmente será terrível e trágico. Acho que também um certo imaginário romântico, com quem o personagem do Artur dialoga e a obra do Basquiat, que aliás era filho de haitianos e tinha uma forma bem interessante de digerir essa cultura. O Artur foi um pouco inspirado num jovem Basquiat, seus desenhos/pinturas foram todos feitos por um artista, Douglas Knesse, que tem essa referência também. Mas também um cinema mais contemporâneo, como o do Abel Ferrara, Claire Denis, irmãos Safdie, que foram todos importantes na minha formação. São cineastas que trabalham com personagens que vão a fundo em seus próprios desejos, muitas vezes em jornadas destrutivas, e sempre achei isso muito forte.
Enquanto via o filme, fiquei delirando na ideia de que o filme era um body horror e li no release que você queria mesmo discutir o impacto do luto no corpo. Como você acha que o filme reflete essa discussão do luto?
Não conhecia esse termo body horror, mas tem super a ver. O filme desce até as entranhas da Silvia, literalmente, para compreender esse luto. E acho que toda grande perda tem um impacto no corpo, não? Achava importante trazer esse aspecto bem físico e visceral, até porque é algo que me interessa em termos cinematográficos, ao mesmo tempo em que existe também esse plano do espírito e de uma conexão mais telepática entre a Silvia e o Artur. Acho que ela vive uma explosão de sentido ao conhecer esse menino, e tudo passa a ser muito mais vibrante e colorido. Quando ela o perde, no entanto, mergulha num abismo muito profundo, onde nada mais importa. A partir daí ela começa a trabalhar o luto, mas para na fase da negação, e aí que está todo o problema.
Alguma coisa do filme vem de uma experiência pessoal (em muitos momentos, parecia lidar com minha própria experiência de perder alguém)?
Com certeza. Eu vivi uma experiência parecida quando era bem mais nova. Tive vários sintomas no próprio corpo, até cheguei a fazer endoscopia com o mesmo médico que fez a cena do filme.

As cores parecem ter um papel importante na composição das imagens do filme…
O verde e o roxo acabaram entrando de forma forte e nas minhas discussões com a diretora de arte, Elsa Romero, entendíamos que eram cores complementares: de um lado o aspecto mais natural/selvagem da natureza, de outro uma cor que é muito associada à magia e ao sobrenatural. Também decidimos que laranja e rosa eram cores do Artur e da Silvia, mas de maneira mais intuitiva. Desde o início pensava num filme muito colorido, porque queria que a imagem refletisse essa intensidade do mundo que a Silvia descobre com o Artur. E quando fomos para a correção de cor, construímos uma trajetória de ir dos tons mais quentes – coincidindo com esse momento de encontro/convivência, aos mais frios – conforme a melancolia e o horror invadiam a história.
Sem Seu Sangue é um filme de zumbi?
Não sei se é. Acho que se eu dissesse isso o filme acabaria contrariando muitas expectativas, mas talvez dê para dizer, com spoiler, que é um filme com um zumbi [risos]. E sem dúvida cheio de reverência, como disse acima, às origens desse gênero no cinema. Mas acho que filme de zumbi normalmente nos faz pensar numa história em que o monstro não é um, mas uma massa, e uma massa acrítica, que aliás faria muito sentido no mundo de hoje, com tantos problemas de disseminação de fake news e processos eleitorais que são totalmente capturados por elas. Mas Sem Seu Sangue não caminha muito por aí. Inclusive, se temos um zumbi, é um zumbi com agência e vontade, não um zumbi lobotomizado como o que estamos mais acostumados a ver. No fundo, ele é quem tem o controle sobre a situação final…
Adorei a referência ao Frankenstein de 1908. O personagem do Artur, em alguma medida, reflete a criatura no fim do filme.
Que bom que você percebeu! É por isso mesmo. O Artur (ou algo que remete a ele, mas já não é a pessoa que conhecemos) ressurge das cinzas como uma criação monstruosa do desejo dela. E essa cena está ali anunciando isso.
Quais são os planos para Sem Seu Sangue depois da exibição pelos cinemas?
Vamos lançar ainda a trilha sonora original no Spotify, e mais para o fim do ano provavelmente teremos a estreia na Netflix. Isso me anima muito, principalmente porque estou ávida para que o filme encontre um público jovem, e eles hoje em dia estão mais presentes aí do que nas salas. Ainda assim, para quem pode ir, a experiência no cinema é potencializada, há aspectos sonoros que só são possíveis de serem ouvidos na sala. Apesar disso acho que serão duas janelas muito bacanas, fico muito feliz de poder mostrar o filme em ambas e chegar a todos os tipos de público.
Quais são seus próximos projetos? Alguma coisa ligada ao horror?
Continuo uma grande fã do gênero, mas por enquanto estou focada em dois projetos (um filme e uma série) que serão um pouco mais leves e luminosos, ainda que tragam alguns elementos [de horror].