No início dos anos 2000, diretor Luciano de Azevedo viu Amor Só de Mãe (2003), de Dennison Ramalho, em uma sessão do projeto Curta Petrobras às Seis, em Juiz de Fora. “Isso é terror de verdade!”, pensou. A experiência o impactou tanto que serviu de influência para seu primeiro curta-metragem, Cabrito, lançado em 2015.
O filme rodou por mais de 50 festivais pelo mundo todo e ganhou 15 prêmios. Foi responsável por colocar Azevedo em contato com o diretor de fotografia Otavio Pupo e o produtor Carlos G. Gananian. O trio resolveu desenvolver a história em mais um curta, chamado Rosalita – a ideia acabou crescendo e se tornando um longa-metragem.
Essa versão extensa e completa de Cabrito está atualmente em exibição no Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que ocorre de forma remota e gratuita pela plataforma Darkflix até o dia 2 de agosto. Na trama do filme, o público acompanha três momentos da vida de um homem assombrado pela memória do pai abusivo, da mãe e da irmã.
Na entrevista abaixo, concedida com exclusividade à Escotilha, Azevedo comenta suas influências para a produção, comenta o desenvolvimento dela e seus próximos projetos.
Escotilha » Quais influências você levou para Cabrito?
Luciano de Azevedo » O Massacre da Serra Elétrica, de Tobe Hooper é meu filme favorito. Há muito do contexto da família em situação de miséria se virando em um país em ruínas. Amor só de mãe, do Dennison Ramalho, foi uma referência de ambientação de personagens muito forte. A estética do New French Extremity, com um cinema bem cru cheio de grãos com grande apelo psicológico também foram importantes.
Como você concebeu o filme?
O curta-metragem Cabrito saiu do papel graças ao amor pelo cinema da equipe que encabeçou o projeto sem receber nenhum centavo. Eu consegui pagar maquiagem, alimentação e o deslocamento para uma fazenda centenária no interior de Minas Gerais. Na época, eu buscava por alguma coisa bem Brasil do interior, com histórias da roça, ligando isso a uma crítica religiosa. Aí chamei o ator Samir Hauaji para construir o personagem central.
E como o curta virou longa?
Estreamos no [Festival de Cinema de] Sitges e conheci o diretor de fotografia Otavio Pupo e o produtor Carlos G. Gananian, que estavam lá com outro filme. De várias conversas, surgiu a ideia de gravar mais uma passagem do curta, para o final da história. Depois, consegui apoio para gravar o prólogo.
O filme deixa muitas questões abertas…
Quis criar uma história sem muitas explicações. São passagens na vida dos personagens. Uma grande crítica ao fanatismo religioso e ao militarismo, que está muito presente em nosso país.
Essa crítica social é bastante clara na narrativa. Especialmente à religião.
A religião sempre esteve incrustada na política brasileira. Isso vem crescendo a cada ano e as implicâncias acarretadas com tal crescimento atingem questões sociais, políticas e culturais. Crescemos vendo sacos de dinheiro saindo de cultos religiosos ao vivo na televisão. Percebemos que a relação entre religião e violência, na sociedade moderna, tem um potencial ampliado a partir das relações entre discurso religioso e militarismo, que se retroalimentam e se legitimam na medida em que ambos os processos se instrumentalizam.
Como em O Massacre da Serra Elétrica e Amor Só de Mãe, o filme é ambientado em um universo de cidade do interior. Acha que isso contribui para essa discussão social?
O terror no Brasil vem de algo oculto e visceral, muitas vezes bem regional. Temos crimes de fanatismo religioso acontecendo quase todo dia: casos de empadas de carne humana e pedaços de corpos aparecendo em praças de grandes centros. Na minha cidade natal, uma mulher matou a outra para roubar o bebê que estava no seu ventre. Isso é terror e poucos filmes mostram isso.
O filme também é bem sujo e escuro. O que te guiou nas escolhas estéticas?
‘A religião sempre esteve incrustada na política brasileira. Isso vem crescendo a cada ano e as implicâncias acarretadas com tal crescimento atingem questões sociais, políticas e culturais.’
Eu e o diretor de fotografia Otavio Pupo acreditamos que uma das potências do cinema de horror é justamente a possibilidade de poder ousar no quesito “claro/escuro”. Esse era o peso que queríamos de imprimir no filme, sem “medo” de deixá-lo escuro demais. Gostamos muito da ideia de adicionar grãos e destruir a imagem na pós para quebrar a estética de vídeo e ficar mais “analógico”. Trabalhamos muito com luz natural. Percebo que isso coloca uma leveza no set. Com menos equipamentos, a equipe fica pronta mais rápido e podemos ousar nos movimentos de câmera e em ângulos inusitados.
Quais são os planos para o filme depois do Fantaspoa?
O filme irá passar por alguns festivais este ano que ainda não tiveram seus line ups divulgados. Fomos convidados para participar de Sitges, onde o curta Cabrito teve sua estreia em 2016. Depois vamos focar no lançamento por streaming. A ideia inicial era estrear nos cinemas este ano. Como isso não foi possível por conta da pandemia, vamos adaptar para o lançamento digital e talvez uma edição em VHS limitada, como fizemos no curta.
E quais são seus próximos projetos?
Estou finalizando o roteiro do meu próximo longa-metragem, Ardor, que é o recorte do final da vida de um casal de piromaníacos. Também estou escrevendo outros projetos junto com meus amigos o roteirista Yuri Westermann e o produtor Pedro Carcereri, que também participaram das produções dos filmes anteriores.