Recorro com frequência nesta coluna à ideia de que as monstruosidades do cinema sempre funcionam como um tipo de alegoria social. Godzilla é uma metáfora nuclear. Os lobisomens são comentários sobre a sexualidade (e agressividade) masculina. A criatura de Frankenstein funciona como um alerta sobre como os perigos do avanço da tecnologia na vida humana.
Okja (2017), do diretor sul-coreano Joon-Ho Bong, abraça essa natureza reflexiva da construção do monstro para criar um belíssimo (e amargo) comentário sobre o mundo contemporâneo. O filme, uma produção exclusiva da Netflix que acaba de chegar à plataforma, foi pivô de polêmicas no Festival de Cannes ao anunciar que não seria exibido nos cinemas, apesar de disputar à Palma de Ouro – decisão que foi revista pouco depois.
Em Okja, um porco gigante vira uma alegoria sobre como condicionamos a vida ao lucro. O enredo é uma grande crítica ao sistema capitalista.
A narrativa começa com um anúncio de um novo produto por uma empresa chamada Mirando, uma multinacional de alimentos com um histórico sombrios. Sob a direção de Lucy (Tilda Swinton), a corporação resolveu apostar na carne de uma nova espécie de porco supostamente encontrado no Chile. Como o animal leva tempo para crescer e se tornar um super-suíno, a companhia criou uma competição de dez anos para promover o alimento.
A campanha consiste em observar o desenvolvimento desses bichos e criar um evento gigante em Nova York para apresentá-los para o público. Cada um deles seria criado por um fazendeiro em um país diferente. Nesse momento, somos apresentados a Mikha (Seo-Hyun Ahn), uma jovem menina coreana que cresceu ao lado de Okja, uma das porcas que participa da competição.
As primeiras cenas entre a garota e o animal constroem o laço emocional entre os dois. A relação ecoa a vista em filmes como O Monstro do Mundo Proibido (1949), Meu Amigo, o Dragão (1977) e Meu Monstro de Estimação (2007). Até o recente Monster Trucks (2016) tem elementos semelhantes sobre a amizade entre jovens e criaturas monstruosas.
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Como nessas produções, Okja também tem como vilão a ganância humana. A diferença é que o desfecho da obra de Bong é bem menos otimista. O super-porco é criado como uma opção barata e sustentável de alimentação e um produto altamente rentável. Além disso, parece ser delicioso. Contra esses elementos, fica difícil defender a morte do bicho.
Ao longo da trama, torcemos pela sobrevivência de apenas uma das milhares de suínas criadas pela Mirando. Levamos muito tempo para pensar e nos importar com as demais, o que ocorre em duas ou três cenas devastadoramente tristes na metade final do filme. Eu, que nunca pensei em ser vegetariano, decidi que iria comer menos carne tamanho impacto da mensagem deixada pela narrativa.
Em Okja, o porco gigante vira alegoria sobre como condicionamos a vida ao lucro. O enredo é uma grande crítica ao sistema capitalista e à ausência de perspectivas de mudanças rápidas e uma ode ao egoísmo, pois a única maneira de sobreviver a ele é pensando apenas em si próprio.
Não é cinema de horror, mas é cruel como se fosse.
Assista ao trailer de ‘Okja’
https://www.youtube.com/watch?v=20LmSp1aQxk