Em 1977, o cineasta sul-coreano Shin Sang-ok e a esposa, Choi Eun-hee, foram sequestrados por norte-coreanos na calada da noite. Ambos pararam em alojamentos, a alguns quilômetros de Pyongyang. Ela foi forçada a bancar a moça comportada e entrar no círculo de convívio de Kim Jong-il, futuro ditador da nação oriental. O marido tentou fugir e acabou num campo de concentração por dois anos. Só saiu ao aceitar a condição de virar o diretor oficial da República Popular Democrática da Coreia.
Bancados pelo aparato estatal, Shin e Choi produziram sete longas-metragens para Jong-il, então chefe da propaganda da Coreia do Norte e filho do Supremo Líder Kim Il-sung. As narrativas eram grandes peças publicitárias ufanistas . Uma delas, no entanto, tornou-se a fita mais famosa do país. Curiosamente, tratava-se de um exemplar de cinema kaiju.
Pulgasari (1985) nasceu como todos os outros títulos comandados por Shin no período em que serviu, forçadamente, ao Partido dos Trabalhadores da Coreia: foi inspirado por um sucesso cinematográfico estrangeiro. Embora filmes de outros países não fossem permitidos dentro da nação comunista, Jong-il mantinha uma vasta coleção particular de obras e era um ávido fã de Godzilla (1954), clássico de Ishirô Honda.
Visivelmente barata, a obra de Shin hoje é um documento histórico interessante.
Para criar uma narrativa com monstro gigante, o ditador e o cineasta se inspiraram em uma lenda local sobre uma criatura que crescia ao devorar metais. Supostamente, há um longa sul-coreano perdido que serviu como base para a narrativa, chamado Bulgasari (1962). O pesquisador Jason Barr, no livro The Kaiju Film: A Critical Study of Cinema’s Biggest Monsters, afirma que a obra pode não passar de uma lenda da internet.
Em Pulgasari, um grupo de trabalhadores de uma ferraria medieval é preso depois de se recusar a entregar suas ferramentas rurais ao Império, que pretende transformá-las em armas. Um ancião, dono da oficina, morre na prisão criando um feitiço para livrar o povo das mãos do opressor imperador. O sacrifício dá vida a um monstro, que cresce ao comer ferro.
A partir daí, a narrativa se torna uma história de guerra. Pulgarasi, a criatura, é a arma dos oprimidos para derrubar o governo. Assim como outras peças de divulgação das “maravilhas” da república popular da Coreia do Norte, a lição aqui é que o trabalho das massas garante igualdade a todos.
Visivelmente barata, a obra de Shin hoje é um documento histórico interessante. Se, por um lado, a trama parece rasa e os efeitos visuais não convencem, apesar de esforçados, assistir a Pulgasari nunca é uma experiência entediante. Muito pelo contrário, quanto mais se pesquisa sobre as condições em que foi lançado, mais interessante a narrativa fica.
A história do sequestro do cineasta sul-coreano e sua esposa por Jong-il é contada pelo jornalista Paul Fischer no livro Uma Produção de Kim Jong-il, lançado no Brasil pela editora Record. O casal, depois de viajar para promover uma das produções bancadas pela Coreia do Norte, pediu asilo na embaixada norte-americana em 1986. Nos Estados Unidos, Shin chegou a escrever uma refilmagem da fita kaiju – de longe sua produção mais conhecida – para a Disney. O projeto virou o telefilme Galgameth (1996).