A Guernica, uma das mais célebres criações de Pablo Picasso, foi concebida como uma maneira de refletir sobre um bombardeio durante a Guerra Civil Espanhola. Após ler sobre a tragédia em um recorte de jornal, o pintor cubista concebeu a tela como uma maneira de digerir o fato. Ao chão, um homem grita de dor em agonia. Cabeças deformadas de animais dividem espaço com uma mãe que chora sobre o corpo do filho morto. Talvez os traços do cubismo nunca tenham feito tanto sentido quanto nesse quadro de 1937. Afinal, a guerra só pode ser fruto de um universo absurdo e irracional.
Como um tipo de arte, o cinema também tem potencial de expressar o pesar de uma desgraça. Às vezes, essa terapia pode ser bem pessoal. A sangrenta adaptação de Macbeth (1971) de Roman Polanski parece interessada em representar a violenta morte de sua mulher, Sharon Tate, assassinada em 1969 por membros da Família Manson. O próprio diretor chegou a afirmar isso para o elenco e os colegas de produção na época das filmagens.

Poucos filmes conseguem captar tão bem a essência de uma calamidade coletiva quanto o primeiro Godzilla (1954), de Ishirô Honda. A obra foi elaborada para provocar uma reflexão sobre os efeitos das bombas nucleares que atingiram Hiroshima e Nagasaki, em 1945. A saída para não retratar diretamente a tragédia foi transformá-la em uma alegoria gigante, que imediatamente se tornou um sucesso.
Quem nunca assistiu à primeira incursão do lagarto japonês nos cinemas pode ficar impressionado com a seriedade com que tudo é filmado. Não há humor, nem excessos. Uma cena, particularmente, incomoda-me bastante: um grupo de centenas de crianças canta para as vítimas de forma lúgubre. O momento é melancólico e dramático – bem distante do falsete tokusatsu que se tornaria marca indissociável do personagem nas décadas seguintes.
Desde então, a criação de Honda praticamente deixou de servir como uma expiação de traumas japoneses. Em muitas sequências adotou o humor escrachado e virou um sinônimo de ridículo. O mais perto que chegou de se tornar reflexivo para alguma causa foi no irregular Godzilla vs. Hedorah (1971), produção que abraçou o ambientalismo como bandeira. Na narrativa, o personagem de borracha enfrenta um gigantesco ser que nasce do excesso de lixo produzido pelo mundo.
Uma grande tragédia, para quem a acompanha de perto, faz tanto sentido quanto um lagarto gigante que vomita radiação. Ver isso na tela nos ajuda entender melhor nossas angústias.
É revigorante, portanto, perceber que Shin Godzilla (2016), da dupla Hideaki Anno e Shinji Higuchi, volta a servir como um exercício terapêutico de uma tragédia. Tenso e quase sem humor, como no original, a produção reinventa a aparição do monstro sexagenário e o usa como alegoria para o terremoto seguido de tsunami que atingiu o Japão em 2011.
Na ocasião, o país oriental enfrentou uma das maiores calamidades públicas desde o ataque nuclear dos Estados Unidos no fim da Segunda Guerra Mundial. Centenas de casa e construções foram destruídas, milhares de pessoas morreram e um abalo sísmico provocou um vazamento nuclear em Fukushima. Imagens de ondas devastadoras levando carros como se fossem de isopor dominou os noticiários do mundo todo.

É justamente sobre essas cenas de tsunami japonês que podemos perceber a intenção do novo Godzilla. A criatura, que aparece de diversos tamanhos e formatos antes de evoluir para o visual que o conhecemos, deixa o mar e invade as ruas como uma força incontrolável da natureza. Por onde passa, empurra carros e destrói edifícios. Um grupo de cientistas percebe que ele deixa um rastro de radiação, que pode atingir a população.
A versão americana de 2014 usa um conceito semelhante para retratar Godzilla. O filme de Gareth Edwards, no entanto, falha em entender o que representa a ideia do monstrengo no Japão. Não por acaso, a produção tem um ritmo automático, quase sem coração.
Shin Godzilla, por outro lado, tem um claro interesse em refletir a realidade. Uma grande parte da trama se passa nos corredores e escritórios do governo japonês. A edição, em muitos momentos, lembra a de Voo United 93 (2006), de Paul Grengrass. O excesso de cortes secos e diálogos rápidos mostram o trabalho de burocratas lidando com a tragédia.
Em uma entrevista, os diretores Anno e Higuchi afirmaram que se inspiraram em A Rede Social (2010), de David Fincher, para construir a relação entre os personagens e o senso de urgência da trama. É um olhar realista sobre um evento absurdamente fantástico. O contraste ainda inclui discursos significativos sobre a utilidade da ONU, a interferência dos Estados Unidos no Japão e a existência de bombas nucleares no país. O resultado é bem diferente do carnavalesco Godzilla Final Wars (2004), última aparição nipônica do monstro nas telonas.
Como a Guernica de Picasso, penso que Shin Godzilla é uma reflexão sobre fatos que são difíceis de digerir. Uma grande tragédia, para quem a acompanha de perto, faz tanto sentido quanto um lagarto gigante que vomita radiação. Ver isso na tela nos ajuda entender melhor nossas angústias.