A sociedade está profundamente desconectada das suas origens. Não falo dos ancestrais, nem de retorno ao tempo das cavernas. Não precisamos ir tão longe. Está desconectada de como chegou ao mundo. De que a mãe um dia foi um barrigão de grávida e logo depois chegou um bebê chorão que exigiu noites em claro e trocas de fralda.
Tanto é que choro de criança parece ser um som proibido, maléfico, terrível. No supermercado, no shopping, no avião, no restaurante, no parque, na universidade, na casa dos amigos. Todos os dias, milhares de pais deixam de frequentar os lugares que normalmente iriam porque a sociedade não sabe lidar com a possibilidade de ouvir o choro da criança.
Há alguns anos, fez sucesso a iniciativa de um casal, nos EUA, que distribuiu balas e tampões de ouvido para os companheiros de voo da filha de 8 meses, já que eles não poderiam prever como ela iria se comportar. Diz que por lá isso agora é comum. Pode ser visto como um mimo ou como política de boa vizinhança, mas o que poderia parecer bonitinho corre o risco de extrapolar e chegar em situações absurdas.
No ano passado, mãe e filho foram expulsos do um voo. Há hotéis e restaurantes, ao redor do mundo, que proíbem a entrada de crianças, supostamente por conta da “algazarra”. Na semana passada, no Rio Grande do Sul, uma estudante foi expulsa da sala de aula porque estava com a filha; e olha que, de acordo com os relatos, nem chorando a menina estava.
Na verdade, isso parece mais um sintoma de pessoas que entendem pouco da vida em sociedade. Você pode escolher não ter filhos, mas não pode deixar de conviver com crianças. No fim das contas, é um preconceito como qualquer outro.
Você pode escolher não ter filhos, mas não pode deixar de conviver com crianças. No fim das contas, é um preconceito como qualquer outro.
Esse sintoma afasta os pais da vida social e do prazer. A longo prazo, gera cuidadores com pouca ou nenhuma opção de lazer e crianças que cada vez menos convivem com o mundo e, por consequência, cada vez menos saberão conviver com o mundo.
Ninguém quer ver uma criança chorar, é claro.
Elas choram aparentemente sem motivo, mas é porque ainda não tem o neocórtex cerebral completamente desenvolvido. Essa é a parte do cérebro responsável pelo pensamento, por concatenar as ideias. Até os seis anos, outra parte do cérebro, o chamado cérebro reptiliano – responsável pelo comportamento mecânico, meramente instintivo – é acionado sempre que a criança se sente frustrada ou receosa. Há uma explicação científica.
O melhor jeito de proporcionar um desenvolvimento cerebral saudável para as crianças é aceitar e acolher o choro, porque elas, simplesmente, não sabem como se comportar melhor ou o que fazer.
E, é claro, não isolá-las do mundo que não aceita que elas sejam crianças.
O oposto
No Japão, há um festival que festeja o choro dos bebês – de um jeito um pouco ortodoxo. Há mais de 400 anos, no Baby Crying Sumo Festival, lutadores de sumô seguram crianças no colo, frente a frente, e ganha quem começar a chorar primeiro. Se nenhum chora, o árbitro deve assustá-las. Não concordo com o método, mas o rito tem um significado bonito: para eles, o choro significa saúde e prosperidade para os japonesinhos.
Pois bem, na próxima vez que olhar feio para uma criança chorando no supermercado ou maldizer a companhia aérea pela mãe com bebê no colo sentada ao seu lado, pare e pense quantas vezes você mesmo quis chorar até que alguém resolva seu problema ou agiu por impulso. É o cérebro reptiliano em ação, igual ao mecanismo das crianças pequenas. Aceite-as.
Pais do mundo, uni-vos. Acalmem seus rebentos, na medida do possível, mas não deixe uma sociedade levemente desregulada furtar seu lazer e os passeios compatíveis com a idade de seu filho.
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