Sabe aquela história de que o mundo está chato e agora tudo é politicamente incorreto? Pois é, está mesmo. Mas vejamos pelo lado bom: até pouco tempo atrás, repetíamos padrões, preconceitos e estereótipos que minavam qualquer possibilidade de harmonia na vida em sociedade. Ainda que qualquer possibilidade de avença completa esteja em um longínquo horizonte, vamos passo a passo até lá. Talvez possamos começar revendo as histórias que contamos para uma criança dormir.
Depois de desassociar a amamentação como único caminho para o sono (é bem recente), passei a cantar ou contar histórias para minha filha dormir. Como sei mais escrever textos jornalísticos do que criar personagens e roteiros que não recaiam na nossa realidade, tive de recorrer aos clássicos infantis. Fui puxando, lá no fundo da memória: Chapeuzinho Vermelho, Três Porquinhos, Cinderela, Branca de Neve e Sete Anões… Confesso que sei oficialmente apenas pedaços de cada uma delas, mas não conseguia optar por nenhuma, porque todas me pareciam problemáticas.
História de princesa salva por um príncipe? Não.
História de uma madrasta má? Não.
História de animais construindo casas? Não.
Tentei começar pela história da menina que vai levar comida para sua avó. Podem me tachar de chata, está liberado. Mas acompanha aqui comigo:
“Era uma vez, uma linda menina que se chamava Chapeuzinho Vermelho” (por que a referência a ela é sobre beleza? Por que a roupa determina o nome dela?).
“Ela precisava levar guloseimas para sua avó que estava doente e sem vontade de cozinhar” (por que guloseimas e não uma cesta de comida de verdade? Frutas, verduras, feijão, arroz, um bom bife ou molho de carne moída. E a relação idoso/doença? Nem se fala).
“Ela estava com muito medo porque teria que passar por uma floresta sombria e perigosa, com mata fechada” (por que incutir o medo da natureza desse jeito?).
“’Não fale com ninguém no caminho’, alertou a mãe da Chapeuzinho Vermelho” (novamente vemos o reforço do medo e do pavor na criança).
“Enquanto andava, apareceu um lobo enorme e mau, que pensou logo em devorá-la, mas resolveu usar a astúcia: ‘Aonde você vai, menina?’, perguntou ele, com voz doce. Ele temia que uns lenhadores que estavam nas redondezas pudessem ouvi-lo na hora do ataque. ‘Levar uns doces para minha avó que está doente, ela mora no final da floresta, na casa branca à esquerda’, disse a menina” (um diálogo surreal, ok).
“Ao de despedir da menina, o lobo tratou de ir mais rápido que ela, por um atalho na floresta. Chegou na casa da vovó, bateu a porta e disse: ‘Vovozinha, sou eu, sua netinha querida que lhe trouxe guloseimas’. ‘Abra a porta e entre’, respondeu a idosa. O lobo entrou e logo tratou de engolir inteira a vovózinha. Vestiu suas roupas e deitou na cama, se passando por ela” (porque uma cena tão tétrica?).
“A Chapeuzinho Vermelho chegou na casa da vovó e bateu na porta: ‘Vózinha, sou eu!’. E o lobo, se passando por avó: ‘Entre minha netinha, estou fraca e deitada descansando’. A menina entrou e logo estranhou a aparência da avó. ‘Vózinha, porque olhos tão grandes? Braços tão longos?… etc” (além do surreal, vemos uma menina que foi facilmente enganada, mesmo tomando as precauções previstas pela mãe, lá no início da história).
“A menina descobriu que era o lobo, saiu gritando e pedindo ajuda dos lenhadores da floresta. Um deles veio ao seu encontro, atirou no lobo, cortou sua barriga e tirou a vózinha de lá, ainda inteira. A Chapeuzinho e a avó foram salvas e viveram felizes para sempre” (por que tal violência animal é tranquilamente aceita? Por que não lidar com a morte de alguém que é comido por um animal? Ninguém é salvo depois de ser engolido por um lobo).
Por mais qualidade e diversidade para as crianças, vamos criar novos contos fantásticos e reavaliar as histórias repetidas desde sempre.
Ok, sei que a história tem milhões de variações mas, grosso modo, é isso que ela é. E não é isso que quero repetir, noite após noite, para as crianças. Podemos refazer o mesmo exercício com todos os outros clássicos infantis e, voilà! Lá estarão diversos conceitos e estereótipos sendo introjetados naqueles pequenos cérebros em desenvolvimento. Sei que o mínimo de senso comum e de padrões é necessário para o entendimento do mundo e que as histórias fantasiosas fazem parte da infância.
Mas acredito que é importante também que, sempre que possível, a gente mostre outras alternativas de narrativas para as crianças. A história em sua versão original, com certeza, será ouvida milhões de vezes pelos pequenos, em vários lugares. Então, me reservo o direito de contar a minha própria versão, na qual a Chapeuzinho Vermelho – que é corajosa e fez aula de defesa pessoal – vai levar uma cesta de frutas para a avó. Ela encontra o lobo no caminho, que está com tanta fome e saí de si ao decidir roubar a cesta de frutas. A Chapeuzinho Vermelho, então, pede ajuda ao lenhador para dissuadir o animal, divide o alimento com ele e convida a todos para uma feliz e farta refeição na casa da vovó.
Desfazer todos esses engodos dá trabalho? Muito! Parece um trabalho sem propósito? Às vezes sim!
Mas é só assim que deixaremos de viver, a gente mesmo, em um suposto conto de fadas e poderemos seguir adiante mais tranquilos, aproveitando o momento para exercitar a criatividade. Como disse a escritora e ativista feminista Chimamanda Adichie, é perigoso conhecer a história por um viés apenas. Então, por mais qualidade e diversidade para as crianças, vamos criar novos contos fantásticos e reavaliar as histórias repetidas desde sempre.