Enfim, a hipocrisia: escrevo esse texto enquanto minhas filhas de 5 e 3 anos estão brincando em um joguinho no celular.
Até março deste ano, elas mal mexiam em celulares. Essa foi uma das mil concessões que tivemos que fazer nesses tempos conturbados e agora elas já estão craques no joguinho, sabem mandar áudio e vídeo pelo WhatsApp e a minha mais nova até entra no Instagram e distribui uns coraçõezinhos.
A relação das crianças com a tela é extensamente pesquisada. E a unanimidade é que é preciso fugir delas. “Os chefões do Vale do Silício não deram computadores aos filhos pequenos”, “o ideal é que a criança maior de 6 anos assista apenas 2 horas de desenhos por dia, acompanhada pelos pais”, “até 2 anos não pode deixar ver tevê”.
Estas são algumas das recomendações dos especialistas, que estão cobertos de razão. Para os pais, fica óbvio o efeito de luzes e cores incessantes nas crianças: ficam hipnotizadas e irritadiças. Para os pesquisadores, a exposição às telas afeta a inteligência e desenvolvimento.
Mas sem escola, com trabalho e prazos… fica difícil não recorrer a este artifício.
Uma pesquisa do Instituto Unilever, de 2007, sobre a “Descoberta do Brincar”, mostrou que, para 97% das crianças, o tempo de brincar é em frente às telas. Faça as contas: há 13 anos, na época da pesquisa, os smartphones ainda não estavam na mão das pessoas. Então essa porcentagem já deve ultrapassado os 100% e qualquer lógica matemática.
Embora o avanço da tecnologia seja determinante, acredito que o jeito como a sociedade enxerga as crianças é ainda mais.
Embora o avanço da tecnologia seja determinante, acredito que o jeito como a sociedade enxerga as crianças é ainda mais. Criança tem que falar baixo, se comportar, manter-se como um mini adulto. E as crianças gritam, derrubam as coisas no chão e bagunçam toda a casa. É claro que é muito mais cômodo mantê-las debaixo das telas (que inclusive é o faço agora, para poder escrever aqui).
Mês das crianças
Outubro a gente vê promoções e sorteios e grandes campanhas das lojas de brinquedos pois, afinal, é preciso vender (criança também é bom quando consome). Para além das engrenagens do capitalismo, muita gente vai usar as redes sociais para postar fotos da infância.
A proximidade com o dia das crianças remete a esse exercício de rememoração da infância, das companhias, da brincadeira. Mais que saudosismo, o fenômeno explicita esse desejo de mostrar nossa infância, mostrar nossas raízes e permite a reflexão: que tipo de crianças fomos? Que tipo de infância tivemos? Quem éramos? Quem deixamos de ser e no que nos transformamos? O que ainda carregamos do nosso “eu criança”?
Quais crianças vamos criar? As crianças que brincam, que são respeitadas, que aprendem… ou as sobreviventes? Não é fácil, é um exercício, é um permitir um descontrole… mas é o mínimo que podemos fazer pela próxima geração.