Era um dia quente de janeiro. Com as crianças em férias, eu havia criado uma rotina: sábados e domingos eu as levava em um parquinho perto de casa, sempre vazio, para que pudessem brincar enquanto eu lia um livro ou respondia e-mails pelo celular. Numa dessas tardes, a pracinha que costumava ser vazia estava cheia. Cheia de crianças da vizinhança, de várias idades, que jogavam bola, corriam uma atrás da outra, enfim. Não sei onde aquelas crianças estavam em todas as outras vezes que fomos àquela pracinha, mas naquele domingo elas estavam lá.
Uma das meninas mais velhas carregava uma sacola, pesada. Nos viram chegando, olharam desconfiadas. Mas assim que viram as minhas meninas – que ainda são pequenas, tem 5 e 3 anos – correndo para subir no escorregador, as crianças mais velhas minimizaram qualquer diferença que poderia haver entre elas. “Adotaram” as minhas meninas como seus mascotes. Carregaram a mais nova no colo, deram as mãos para a mais velha e as levaram para brincar.
A menina maiorzinha – que deveria ter uns 10 anos, no máximo – abriu a sacola pesada e mostrou aos outros o que tinha ali. Vi os olhos de todos brilharem antes que eu pudesse conferir o conteúdo: geladinhos. Ou sacolés. Aqueles saquinhos cilíndricos de plástico com um suco artificial e colorido dentro, geralmente congelados. Sabe qual é?
Cada um pegou um de uma cor, minhas meninas também, uma criança mordia o cantinho da embalagem para abrir para outra, eles trocavam entre si aquele guloseima que ia direto para boca de um e de outro, passava pelas mãos… Uma cena comum, que hoje é inimaginável.
Agora, no mundo da pandemia, não tem parquinho e muito menos sacolé compartilhado. “Hummm, mais higiênico”, você pode pensar. Mas muito, muito mais empobrecido em conexões sociais, convivência e vivência de mundo (e imunidade).
A lida diária para educar nossos filhos não passa apenas por ensinar a comer, dormir, ir ao banheiro, ou ainda, pela educação formal.
A lida diária para educar nossos filhos não passa apenas por ensinar a comer, dormir, ir ao banheiro, ou ainda, pela educação formal. A, b, c, bê-a-bá. Me desculpem o reducionismo, mas isso qualquer um aprende ou aprende depois. O que as crianças precisam é de experiências.
Desde que fui mãe, tomei a decisão de continuar frequentando os lugares que sempre frequentei com as crianças, sempre que possível. Então, nesses cinco anos de maternidade, teve criança acampando, teve criança em show de música, criança em restaurante, criança no teatro, criança na rua, criança no carro, no ônibus e no avião. Criança na fila do banco, da lotérica, vomitando na loja de roupas (ué, né, acontece…), criança no freela, na videochamada com o cliente, tirando a louça suja da mesa do restaurante que a mãe trabalhou; teve criança no bar, na mesa de sinuca, claro que sempre em lugares apropriados e jamais expostas a situações constrangedoras ou violentas.
E agora tem criança em casa e… em casa. No dia seguinte? Em casa. E depois de amanhã? Em casa. No máximo na casa da vó.
A Silvia Federici nos diz, em O Ponto Zero da Revolução (2019), que uma situação ideal na sociedade seria alcançada quando as mulheres tivessem liberdade de entrar em todos os lugares. Dia desses, ouvi uma fala da Ligia Moreira (a Cientista que virou mãe), em que ela vai além: a revolução de verdade acontecerá quando as crianças forem bem vindas em todos os lugares.
Nada mais correto: as crianças ainda são uma minoria, não são bem-vindas em muitos lugares e, agora, principalmente, estão entre as principais afetadas de um confinamento pela metade, em um país desgovernado vivendo uma pandemia. Não podem (ou não deveriam) nem entrar no supermercado, não vão à escola.
Alguns artistas e contadores de histórias possibilitam um pouco dessa vivência online. Canais como Histórias da Ailén e Fafá Conta viraram nossos companheiros na tentativa de minimizar essa distância com o mundo lá fora.
A noção de que a criança é um indivíduo que precisa ser respeitado e não apenas uma tábula rasa é recente. Ela precisa ter contato com a cultura, com as outras pessoas, com as situações cotidianas. Com as mais variadas situações cotidianas. É assim que as crianças se tornam adultos: convivendo e aprendendo.
Como será, no futuro, essa privação de convivência que vivemos agora? Como será feita a “ressocialização” das crianças, nas escolas, nos parques? Sonhamos com a volta do sacolé compartilhado, que nunca mais olharei com nojo.