Na loja de roupa, no brechó infantil, na loja de móveis e até para comprar material escolar ou potes de plástico para cozinha (!!!). Em todos os lugares os pais a ouvem. E até mesmo quem não tem filhos já deve ter ouvido a capciosa pergunta ao adquirir algum item para as pequenas criaturas: “é para menino ou para menina?”. Seis palavrinhas que parecem inofensivas, mas que carregam uma carga cultural imensa e um acordo tácito sobre o que é “certo” e o que é “errado”. Há cores e formatos específicos para meninos e meninas e essa demarcação precisa ser reafirmada desde que a criança sai da barriga da mãe (às vezes antes, também).
Você já imagina: os produtos para meninas, em geral, são em tom de rosa ou roxo; para meninos, azul, verde ou tons de marrom. Para meninas, estampas delicadas, de bonecas, bichinhos ou flor. Tudo fino e com algum enfeite. Para meninos, desenhos de carros e naves espaciais, itens mais “grosseiros” e básicos.
Confesso que até hoje fico um pouco desconcertada com a pergunta, que já me foi feita até quando eu estava atrás de talheres infantis… Oras, talheres? Na próxima refeição que fizer, repare se homens e mulheres adultos usam pratos ou garfo e faca de cor diferente (e espero que não). Por que então para as crianças há essa diferenciação? O reforço do estereótipo de gênero vem de todos os lados, até mesmo para tomar um suco ou usar um produto de higiene – repare que há shampoos e pasta de dente para meninos e meninas também. Não adianta dizermos para nossas meninas que elas podem fazer o que quiserem se elas entenderem, desde muito pequenas, que há sim produtos e “coisas de menina” e “coisas de menino”. Não adianta dizer para os nossos meninos que mulheres são iguais aos homens se desde bebês o que eles veem é diferença.
Nas vezes em que solicitei itens mais neutros, sempre há a desculpa de que o interesse geral é por produtos bem marcados mesmo. “Não tenho espaço no estoque e, não adianta, se não for rosa ou azul não vende”, me disse uma empresária uma vez.
Essa separação é injusta na infância, porque tolhe talentos e vontades.
Já é tão corriqueiro que, se uma criança não está toda vestida de uma dessas cores, não há o reconhecimento do gênero – já cansei de ouvir “ó, que bonitinho ele é”, para minha filha que usa muita roupa herdada dos primos e amiguinhos e tem um cabelo levemente bagunçado que eu não faço questão de pentear demais. Não que eu me importe com esse tipo de comentário, mas me importa o por quê os produtos para crianças precisam refletir essa diferenciação tão gritante entre masculino e feminino: não seria inclusive uma forma de antecipar a sexualização das crianças? Ora, se dos anjos não importa o sexo, das crianças igualmente.
Uma nova corrente?
Há algumas marcas de roupas e brinquedos para crianças que apostam no conceito “genderless”, já presente na moda adulta. Uma escolha acertada do ponto de vista mercadológico, já que, assim como eu, outros pais e mães já não se contentam com o “rosa ou azul”, uma vez que entendem que a pluralidade tem de estar em tudo, desde o cotonete até o Kinder Ovo.
Essa separação é injusta na infância, porque tolhe talentos e vontades. Imagina uma menina que sonha em ser astronauta, mas não tem nenhuma roupa de cama para ela com desenho de naves espaciais? Ou se quando ela quiser um brinquedo desse tipo, ouvir dizer que não é para ela? Dia sim, dia não, ela será desmotivada. Ou um garoto que sonhe em ser professor, ou uma menina que queira jogar futebol americano, ou um menino que queira ser estilista ou uma guria que sonhe com Congresso Nacional, enfim…
Perdemos uma infinidade de possibilidades quando engessamos e condicionamos nossas crianças a um padrão pré-estabelecido que não leva a nada: nós, adultos, sabemos que a cor da roupa, do carro, do prato ou do talher de nada influencia na vida prática, na vida real. Por que então enchemos a cabeça das nossas crianças com essa baboseira? Busquemos mais opções e vamos falar disso sempre, para que ocupemos as sinapses dos pequenos com o que realmente importa, por exemplo, um mundo mais igualitário e menos machista.
Um vídeo da ONG Inspiring the Future resume bem o quanto essa “demarcação cultural” está profundamente envolvida nos nossos conceitos e práticas cotidianas.