É inevitável que as crianças comecem a se deparar com a ideia de morte, da finitude. Um bichinho que morre, um familiar que envelhece, um conhecido qualquer que elas ouvem falar que partiu ou que está próximo de partir. Crianças pequenas como as minhas filhas, que têm 4 e 5 anos, e vivem há um pouco mais de um ano uma pandemia mundial, encaram a morte com intensidade ainda maior.
A morte é corriqueira mas também é um tabu. E o filme Soul consegue reunir com destreza essas vicissitudes da vida e do pós vida, além de desfazer uma confusão recorrente nesses tempos de colheita farta de coaches charlatões: que propósito e objetivo de vida não são a mesma coisa e que nem sempre a obstinação é um bom caminho.
A grande e complexa pergunta que norteia o roteiro – “qual é o sentido da vida?” – é respondida de várias maneiras durante a trama
A obra da Pixar foi lançada na plataforma Disney Plus no final de 2020 e, não à toa, é um dos indicados ao Oscar de Melhor Animação na cerimônia que acontece no próximo domingo. O longa também concorre aos prêmios de Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Som.
A grande e complexa pergunta que norteia o roteiro – “qual é o sentido da vida?” – é respondida de várias maneiras durante a trama: com a morte do protagonista no que seria o dia mais importante da sua vida, o encontro dele com uma alma desenganada que não encontra um sentido para viver. Ambos buscam respostas e as encontram um no outro, indicando a necessidade de convivência e relacionamento.
Em um momento alto do filme, vemos almas que se transformam em monstros de escuridão quando ficam implacáveis e renitentes em seus gostos, manias, hobbies e trabalhos.
Por muitos momento, vendo Soul, me lembrei da perfeita crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada “Para Maria da Graça”. Um trecho do texto cairia bem na animação:
“Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste” (a crônica completa está disponível aqui).
Como outras produções da Pixar, Soul parece ser feito par adultos antes das crianças. Diálogos profundos e cheios de significado, analogias poderosas. Não reclamo, aliás, acho ótimo ver tamanha qualidade em um produto voltado à infância. Com trilha instrumental primorosa, doses generosas de humor e tratando de um assunto sério, o filme consegue tratar de saúde mental e sobre como viver um vida com mais sentido.
Para as crianças daqui, a primeira impressão era que o filme contava uma história sem pé nem cabeça. Foi preciso assisti-lo duas vezes para que elas entendessem a história e, depois disso, já pediram diversas vezes para assistir à animação. Se antes repetiam a tradicional história sobre “virar estrelinha”, depois do filme demonstram estar mais céticas com relação ao que acontece depois da morte.
Mas não por isso menos poético: falam sobre o que elas eram antes de virem viver na terra, de como aprenderam o que já sabem e que, talvez, depois de morrer, podem ensinar outras alminhas sobre o que viveram aqui. Melhor que virar estrelinha é brilhar para ajudar a distribuir iluminação e a história do Soul mostra isso como nenhum outro desenho. Não recomendo apenas em caso de lares com fortes influências religiosas, afinal, o filme põe em cheque alguns grandes dogmas defendidos pelas religiões.