Confesso: já fui dessas pessoas que lamenta a viagem no ônibus interestadual ao lado de uma criança. Agora, quase dois anos depois de ser mãe, já não reconheço mais aquela jovem – imatura, que confundia egoísmo com liberdade – e, ainda bem, adquiri a capacidade de ter mais empatia com os outros, sejam eles quem forem, inclusive com as crianças (as fofas e as pestinhas também).
A maternidade me tornou capaz de olhar o mundo com um novo ângulo. As situações cotidianas, as tarefas elementares, os perrengues. Todo dia com uma criança pequena oferece a oportunidade de revisar alguns conceitos, preconceitos e as “velhas opiniões formadas sobre tudo”.
Em linhas gerais, dá para fazer a seguinte analogia: é como se estivéssemos em uma longa sessão de análise; só que em vez de deitados no divã, estamos nos dividindo em mil para fazer tudo que é preciso e não deixar nenhum prato deixar de girar, como na antiga atração circense.
Eles repetem muito do que fazemos e é esclarecedor e assustador ter um espelho tão nítido dos nossos próprios defeitos.
Minha filha, que sempre foi boa de garfo, passou dois dias sem comer. E então eu entendi o desespero que leva pais a oferecerem bolacha recheada para substituir o almoço.
Eu sempre levantei a bandeira da independência das crianças até ter uma bem miúda nos braços e puxar o berço para o lado da minha cama e deixar lá por um bom tempo.
Eu nunca ia deixar minha filha na frente da tevê até estar a 15 minutos do fim do prazo de um trabalho e ela com muita energia para gastar.
Eu achava que a criança chorando e fazendo manha era evitável, mas não é. Eu jamais trocaria um interesse pessoal até ter filhos e perceber que o que elencamos como prioridades, em geral, são coisas facilmente reagendáveis ou até dispensáveis.
É um constante exercício de observação do entorno, de racionalização dos acontecimentos, de prestar atenção nas filigranas do cotidiano, para entender qual é o melhor modo de agir que inclua respeito aos pequenos indivíduos e a si mesmo. Você se vê nas crianças e reaprende mais sobre si mesmo.
Revi Boyhood (2014) dia desses e só então percebi que esse novo olhar, essa capacidade de reinterpretar as coisas se estende e chega até ao que consumimos. Quanta coisa já devo ter deixado passar em livros e filmes!
Quando assisti ao filme pela primeira vez, no ano do lançamento, achei interessante, mas o esquema da produção (as filmagens duraram 12 anos) me chamou mais atenção do que o roteiro (perdão, críticos do cinema). Agora, com o olhar e a cabeça de mãe, pude perceber a riqueza do filme e não contive lágrimas ao perceber que o velho e repetidíssimo clichê sobre a inevitável semelhança entre pais e filhos é a mais pura verdade.
Entre choros, trocas de fralda e preparar a lancheira da escola, às vezes, o tempo parece parar e não parece haver conexão entre uma grande lição de vida e o futuro dos filhos. Mas na verdade, assim como Mason, personagem principal do filme, se transforma de uma cena para outra, é num piscar de olhos que os filhos crescem: vão por em prática todos os ensinamentos que vivencia e repetir aquilo que mais veem.
O guri reivindica a vida própria, a independência, sem a “intromissão” da mãe, de cuidadores, da escola. Quer pensar e agir por si próprio. Desde que os filhos são bem pequenos, convivemos com esse dilema do cuidado dos pais versus conviver em sociedade. E é no jeito que os filhos agem com os outros que conseguimos avaliar como é o cuidado que temos com eles. Eles repetem muito do que fazemos e é esclarecedor e assustador ter um espelho tão nítido dos nossos próprios defeitos.
Na história do filme, Mason adquire a esperada liberdade. Mas tenho certeza que, se o roteiro tivesse uma continuação, não levaria muito tempo para ele perceber o quão parecido com os pais se tornou. Isso não é necessariamente ruim, mas é significativo, pois apresenta a inegável influência que as vivências da infância têm na adolescência e juventude.
O filme, que trata de gente comum, vivendo as coisas da vida também com gente comum, revela a beleza do ordinário. Ter filhos é feito de rotina, de trabalho árduo e não de grandes ocasiões. Mas a pequeneza das tarefas diárias tem o propósito e terá o resultado mais nobre possível: criar novos seres humanos para conviver com o mundo e recriar a si mesmo para tentar ser melhor.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.