Por Mariana Sanchez*, especial para Escotilha
“Pueblo chico, infierno grande“, diz um provérbio espanhol que bem pode ser transplantado para outras geografias: o tamanho de um vilarejo, dizem, é inversamente proporcional à gravidade das intrigas e tragédias que ocorrem nele. A máxima está presente nessa história periférica, ambientada na zona rural da província de Buenos Aires, que acaba de entrar em cartaz na capital portenha após rodar vários festivais estrangeiros. Paula, de Eugenio Canevari, estreou mundialmente em San Sebastián, depois seguiu para os festivais de Londres, Mar del Plata, Cuba e Montevidéu, onde venceu o prêmio de melhor filme independente, e na última quinta-feira chegou ao Cine Gaumont, sala mantida pelo Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA) e principal janela da produção vizinha.

Estamos no campo argentino, em uma estância em Pergamino, onde uma família com muito dinheiro e pouca paciência para criar os filhos se dedica ao agronegócio. Uma avioneta cruza o céu nublado fumigando os campos de soja transgênica, enquanto as crianças brincam em uma piscina não muito limpa. “Paula”, chamam os patrões. “Paula”, gritam os pequenos. Até os cachorros parecem evocar seu nome. E, no entanto, apesar de tão necessária e insubstituível, ninguém lhe dá a menor importância. Ninguém está mais sozinho nessa casa e nesse mundo do que Paula, a babá.
Um dia a menina descobre que está grávida e decide abortar. Se estivesse na capital, talvez fosse mais fácil. Se tivesse dinheiro, muitíssimo mais. Afinal – e eis o pertinente comentário político do filme – o aborto só é de fato proibido para quem não pode pagá-lo, um tabu com perspectiva de classe, portanto. Até conseguir juntar os oito mil pesos que a clínica clandestina lhe pede, Paula precisa ocultar a gravidez dos patrões – tarefa não muito difícil, na verdade, para alguém que parece invisível, exceto para a caçula da casa, que por passar tempo demais com a babá insiste em chamá-la de mãe. Sendo pobre e morando em um pueblo chico, o inferno de Paula será grande e pontuado de violências veladas, que vão do micromachismo à servidão, do racismo à indiferença social. Tudo sob o fino véu da hipocrisia e dos falsos moralismos.

De um lado, o filme está preenchido por um silêncio evidentemente expressivo: Paula não fala por medo, talvez por rancor, e embora seu nome seja sempre pronunciado, ela nunca é realmente ouvida. Por outro lado, o filme também está preenchido por uma verborragia de falas vazias, pela especulação sobre a vida alheia, por conversas que não chegam a lugar algum – como na cena final, de uma fracassada festa de aniversário. O som, portanto, é um elemento central que intensifica a incomunicabilidade das relações. Em Paula, ora fala-se quase nada dizendo muito, ora fala-se muito sobre absolutamente nada.
O som, portanto, é um elemento central que intensifica a incomunicabilidade das relações. Em Paula, ora fala-se quase nada dizendo muito, ora fala-se muito sobre absolutamente nada.
O longa tem pouco mais de 60 minutos, mas o uso de elipses e cenas fora de campo geram a sensação de que aquela narrativa é apenas um recorte de algo maior, que começa antes e termina depois. Algo que transcende a ficção. Gosto da forma elegante como Canevari apresenta o punctum de sua obra, revelando só um pouquinho da tensão, nessa ideia de latência e iminência. O verdadeiramente importante (ou perigoso, ou dramático) está oculto, nunca óbvio. Essa decisão formal – arriscada e ao mesmo tempo madura – parece dialogar, ainda que de modo sutil, com uma das questões do filme: os agrotóxicos na sociedade contemporânea. O veneno que ingerimos e que nos mata diária e silenciosamente, sem muito alarde. Um perigo à espreita. O tema aparece na cena em que Paula e outras mulheres estão na sala de espera da clínica de aborto. Enquanto tratam de evitar qualquer contato visual, escutam as notícias na rádio sobre o aumento dos casos de câncer e os danos dos agroquímicos sobre os recém-nascidos. É interessante que, na cena seguinte, a aborteira fique fora de quadro – o único lugar possível para falar de um tabu. Não à toa o filme traça um paralelo sombrio entre a babá e a cadela da família: enquanto esta terá de ser sacrificada por comer suas crias, aquela também terá de sacrificar seu bebê por não poder criá-lo.
Eu teria amado Paula se não tivesse assistido, 15 anos antes, ao longa de estreia de Lucrecia Martel, verdadeiro divisor de águas da cinematografia argentina. Entre o filme de Canevari e O Pântano há personagens paralelos, temas que se cruzam, linguagens similares e vários elementos recorrentes – dos cachorros e tiros de espingarda à piscina, esse poço de águas turvas da burguesia decadente. Canevari também valorizou o trabalho sonoro – embora tenha preferido um registro mais realista que o de Martel -, e houve momentos em que a sala do Gaumont parecia invadida por grilos e cigarras. (Pena que a recepção acústica tenha sido prejudicada pelo senhor roncando rotundamente na poltrona à minha esquerda.) Reconhecer a filiação direta entre as duas produções, tanto na forma quanto na construção de um universo particular, tirou certa originalidade do filme de Canevari, admito, mas se pensarmos que Martel também descende em alguma medida de Bergman, Ozu, Dario Argento e dos contos de Silvina Ocampo, nenhuma referência será castigada.

Formado pela escola de cinema Bande à Part, de Barcelona, Eugenio Canevari dirigiu três curtas-metragens (Long Distance, La Frontera e Gorila Baila) antes de se lançar ao projeto Paula. A ideia surgiu ao receber a notícia de que seus avôs maternos colocariam à venda a casa de campo da família, em Pergamino. Eugenio, que já morava na Europa, cruzou o Atlântico para eternizar o cenário de sua infância, e contou com um primo para fazer a produção do filme, rodado em apenas três semanas em fevereiro de 2014. A cidadezinha está a quase 1.500 quilômetros de La Ciénaga, onde Martel filmou seu primeiro longa, mas é impossível não ouvir seus ecos ressoando ao longe, como um tiro de espingarda que um garoto dispara, entre os galhos das árvores, contra um animal indefeso.
* Mariana Sanchez é jornalista curitibana, especialista em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná e em Tradução pela Universidade Gama Filho.