Por Mariana Sanchez*, especial para Escotilha
Morreu nossa gata. Recebi a notícia um minuto após terminar de ler um livro de Fabio Morábito. Como de costume, anotei na última folha o local, data e hora do fim da leitura, e fiquei ali contemplando a plasticidade daqueles números: 21/06/2016, 15h51. Que belo dia para ser lembrado, o primeiro do inverno, o último daquela criaturinha de pelagem cinzenta que tanto amamos e com quem convivemos por mais de uma década.
Desde que nos mudamos para Buenos Aires havia o temor de que um eventual rito fúnebre de passagem se desse em nossa ausência. Mas só porque ignorávamos que sua morte já começara na despedida. Felinos são pura presença, o amor em estado tátil. Uma relação que se dá no aqui e agora, ao toque de uma orelha fria e ao som de um ronronado, para além do inteligível. Quando não existe comunicação verbal possível, qualquer mínima distância é uma pequena morte, afinal.
Julio Cortázar, o escritor argentino que mais amou felinos e escreveu sobre eles, dizia que gatos são telefones. Se não compreendemos as mensagens que nos mandam (e que “nossa literatura primária e patética translitera burramente em forma de miaus e outros fonemas parecidos”), os bichanos nada têm a ver com isso. “Todo gato é um telefone, mas todo homem é um pobre homem. Sabe-se lá o que continuam nos dizendo, os caminhos que nos mostram”, escreveu, num conto de Um Tal Lucas.
O livro em que anotei, sem saber, a data da morte de nossa gata, chama-se El Idioma Materno, e é um livro sobre linguagem. Mais especificamente, sobre como é se tornar um escritor em outra língua que não a própria. Fabio Morábito, seu autor, nasceu no Egito, passou a infância na Itália e aos quinze anos se mudou para o México, onde vive até hoje. É um dos poetas e prosadores mais sublimes da América Latina, com uma única obra lançada no Brasil até agora — a novela infanto-juvenil Quando as Panteras Não Eram Negras —, pela Editora 34.
El Idioma Materno saiu em 2014 e foi considerado um dos livros do ano na Argentina pelo suplemento “Ñ”, do jornal Clarín. Trata-se de uma peça literária perfeita: são 84 textos com exatamente o mesmo tamanho e estrutura (uma página e meia), num gênero que oscila entre a crônica — pela forma — e o ensaio — pela densidade do conteúdo.
El Idioma Materno saiu em 2014 e foi considerado um dos livros do ano na Argentina pelo suplemento “Ñ”, do jornal Clarín. Trata-se de uma peça literária perfeita: são 84 textos com exatamente o mesmo tamanho e estrutura (uma página e meia), num gênero que oscila entre a crônica — pela forma — e o ensaio — pela densidade do conteúdo. Neles, o ítalo-mexicano revisita sua própria trajetória de leitor e escritor, numa divertida e comovente meditação existencial sobre “como se fez por si mesmo”, para usar aquela frase maravilhosa do curitibano Jamil Snege.
Cada texto é uma pequena fábula poética que costura sua autobiografia (ou, ao menos, a de um eu ficcionalizado) com temas como língua e leitura, escritura e identidade, linguagem e estilo literário. Em um deles, postula sobre a única diferença que existe entre prosa e poesia (“só há uma forma de escrever um poema, e é verso a verso, enquanto não se escreve um conto ou romance linha por linha”); em outro, descreve o escritor como alguém que não apenas enfrenta o fracasso de escrever, como faz disso sua missão, enquanto os outros apenas redigem. Mais adiante, defende o sotaque como um último reduto da alma, e o ato de sublinhar livros como uma forma de reconhecer, no futuro, quem um dia fomos.
Mas o ponto central desta obra de Morábito está no vínculo que temos com nossa primeira língua e a experiência de assumir, ao longo da vida, uma segunda.
De acordo com os linguistas, antes de aprendermos o idioma materno somos capazes de proferir o som de todos os outros — capacidade que perdemos para sempre assim que começamos a falar. Só que, como diz Morábito, algo dentro de nós jamais esquece o regozijo desses balbucios, quando provavelmente fomos criativos como nunca. “A poesia, com sua ruptura na uniformidade semântica e fonética, é a maior tentativa de reviver essa liberdade articulatória, esse paraíso do qual fomos expulsos pelo idioma que falamos”, compara. Fico pensando se um miado não seria, também, essa espécie de linguagem primitiva total, um poema que algum dia pudemos entender e até mesmo vocalizar antes de pronunciarmos, pela primeira vez, o idioma materno.
Mas agora nossa gata morreu, e todos os telefones ficaram mudos.
Talvez por isso a notícia de sua partida chegou por Skype, numa conversa balbuciante: de um lado, o amigo que buscava palavras para dizer o indizível (a linguagem é sempre falha, sempre incompleta); do outro, a única resposta possível, evidentemente não verbal: o choro (“duração média, três minutos”, seguindo as instruções cronopianas).
Em seu livro, Fabio Morábito atenta para um fenômeno curioso: mesmo depois de muito tempo vivendo em outro país, falando, sonhando e amando em outra língua, o choro é sempre no idioma materno. Para ele, porém, todo escritor escreve em uma língua estrangeira: é preciso se afastar do idioma original (fácil, confortável, lacrimoso) para se tornar escritor, porque “só deixando de chorar é possível escrever”.
Depois de vários dias de choro e luto por nossa gatinha, sentei para escrever estas linhas em tom de despedida.
Conviver com um felino foi, para mim, um aprendizado linguístico-afetivo quase místico. Como ler uma cauda vacilante, um miado carregado de sentidos que nos escapam? Estranhos e fascinantes e misteriosos colóquios. Mas quem sabe, ao contrário de nós, os bichanos nunca foram expulsos do tal paraíso da linguagem total. E, se não compreendemos o vernáculo felino, quem disse que eles não entendem o nosso?
* Mariana Sanchez é jornalista curitibana, especialista em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná e em Tradução pela Universidade Gama Filho.