Belchior teve uma relação muito profunda na forma como passei a encarar a minha nacionalidade, minha brasilidade – essa confusa, e por vezes sem sentido, palavra. Me encantava andar pelo centro das cidades, adentrando vez ou outra sebos e lojas de discos antigas. Com 11 anos, descobri mais profundamente Alucinação, um dos discos mais fantásticos que a música brasileira já teve conhecimento. Era o mesmo disco que uns cinco anos antes havia feito de bumerangue, no auge do CD, quando meu pai resolveu que se desfaria de seus LPs.
Um ano antes deste encontro fiz minha primeira viagem internacional. Tinha 10 anos quando fui conhecer a Bolívia. Peguei um avião da já extinta Lloyd Aereo Boliviano com destino a Santa Cruz de La Sierra. Não sabia, até então, como seria decisiva em minha vida esta viagem, a ponto de influenciar a posterior aquisição do LP de Belchior. Santa Cruz, naquele janeiro de 1995, estava cinza. Na confusão da memória, que me toma boa parte das lembranças de mais de 20 anos, não me recordo de vivenciar por lá muitos dias de sol.
Foi ao som de “A Palo Seco”, “Alucinação” e “Como Nossos Pais” que me identifiquei como um cidadão à margem no sul do mundo. Assim como Belchior, meu delírio é a experiência com coisas reais. Creio ter herdado algum gene melancólico. De fato, sempre fui um cidadão do mundo. Nascer no Brasil, um país de fala portuguesa, cercado por irmãos de fala hispânica, me fez um exilado em minha própria terra. Sou esse rapaz latino-americano, de existência substancialmente dicotômica, mais brasileiro do que eu imagino e mais latino do que nossa (falsa) noção de nacionalidade permite.
“A partir disso, espalhei algo de mim em cada quilômetro andado por esse canto torto. Em troca, roubei um pouco de tudo e de todos.”
Decerto é nossa aldeia que nos torna universais. E existem entre nós, latinos, mais coisas que nos aproximam do que nos distanciem. Me conectei com as canções de Belchior e as atribui sentidos únicos, próprios, só meus. A partir disso, espalhei algo de mim em cada quilômetro andado por esse canto torto. Em troca, roubei um pouco de tudo e de todos. Sibilei as canções de Mercedes Sosa, Violeta Parra, León Gieco, Charly Garcia. Passei a admirar com toda minh’alma os sons emblemáticos de Los Kjarkas. Precisei negar a imagem da pátria de chuteiras para me encaixar na experiência estética que verdadeiramente me representava.
Hoje, mergulho nas milongas, nas chamarritas, no tango, nos gauderismos, no tropicalismo. Encarei a subida do Prata, os pés da Cordilheira, o calor da viola de cocho, o pé-de-serra de Sivuca, Dominguinhos e Luiz Gonzaga. Sonho, mesmo que em vão, viver o suficiente para que a cultura seja nossa, pertencente, representativa e mais latina, para que então eu seja capaz de dominar esse não-pertencimento que me rasga o peito.