Os juros são altos, a crise entrou sem bater e seu poder de compra despencou. No aniversário do rock, muitos debateram se ele havia morrido, estava em coma ou em estado de letargia. E a poesia? O que vocês fizeram da poesia? Há quem a veja como prima pedante do romance, afinal, é “gente diferenciada” dentro da literatura. Ao menos assim enxerga quem não se esforça em encará-la.
Por que raios mereceriam sua atenção Drummond, Bandeira, Waly Salomão, Clarice Lispector, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, Walt Witman e Matilde Campilho? Não tem nenhum Silva, Oliveira, Souza, Santos? Cadê um Pereira nessa brincadeira? Essa gente nem ao menos para te pagar um chope em qualquer bareco desses pela cidade grande.
Ok, vá lá. Não discordo (e nem concordo) com quem tem dificuldades em ver-se representado nessa divisão em estrofes ou versos livres, mas procurei ver além. Nasci no mesmo Goiás de Cora Coralina e vi em minha mãe sua maior fã. Era Cora pra cá, Cora pra lá. Fazia sentido. Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a mulher por trás do pseudônimo Cora Coralina, fez da poesia sua arma. E sua alma. “Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema”.
Ai Cora, quantas vezes tu não me acompanhastes nos trechos entre a Avenida Brasil e a Rua Germânia. Sentava naqueles assentos individuais, abria teu livro de capa dura e páginas amareladas, e me punha a ler-te com a voz do pensamento. Vou ser sincero que tu não fostes a única. Convidei Clarice para o mesmo passeio. Nesta época, era apenas um estudante da quarta série do colégio Artur Segurado. Pegava teus livros emprestados na biblioteca de chão amadeirado, pé-direito alto e não mais que quinze, quiçá dezesseis estantes metálicas.
Ficava apreensivo quando o ônibus entrava na Frei Antônio de Pádua, pois sabia que havíamos chegado na metade do caminho e era muito mais gostoso imaginar que me fazia companhia por todo o trajeto. “Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens e mulheres, ligados profundamente ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar. E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros. Eu voltarei…”.
E Cora voltava. Dissequei todos os poetas que tive oportunidade. Parava vez ou outra para observar quem me observava na condução, pois sim, havia quem me fitasse procurando compreender o que eu, um pivete com 9 anos de idade, fazia sozinho e com um livro desses tão velho nas mãos dentro de um ônibus. Não tinha do que reclamar: retribuía cada olhar com a mesma curiosidade. A poesia me fez diferente, me fez curioso. Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”. Bingo. Ela é seletiva, é refinada e o melhor de tudo, mostra que todos somos, na essência, criadores.
“Recria tua vida, sempre, sempre”. Cora Coralina fazia muito mais sentido agora. Ora, a poesia flertava com ela própria. Era eu um poeta? Para Matilde Campilho, ser poeta é uma profissão eterna e mais: poetas veem poesia a todo momento. Então eu sou um poeta! Ok, não sou.
Parava vez ou outra para observar quem me observava na condução, pois sim, havia quem me fitasse procurando compreender o que eu, um pivete com 9 anos de idade, fazia sozinho e com um livro desses tão velho nas mãos.
Continuando. Preferia o trajeto final com Drummond. Não precisava ser necessariamente a poesia, aceitava sua crônica. Ele era cético e irônico e me encaixava em seus caminhos tortuosos ao longo das três quadras da Engenheiro Cândido Gômide. “A breve distância da mata e dos episódios de rua, sinto-me concentrado, protegido, gratuito, manso, liberto. Como um pássaro de vôo baixo”. A rua terminava em uma ladeira que, por vezes, o próprio ônibus não era capaz de subir. Fazia daquela dificuldade momentânea do veículo minha própria dificuldade em emergir do mergulho na poesia e na prosa do mineiro.
Enfim. Saltava na Andrade Neves, próximo à Primeira Igreja Batista, e de lá ia caminhando até chegar em casa, porém, agora com Cora em mãos. Avistava o portão, daqueles metálicos e baixos, pouca coisa maior que um metro, já da esquina, tamanha ferrugem que tomava-lhe conta. Passava pela porta da garagem, adentrava a sala e corria para o quarto. Sim, ela também me fez companhia na cama.
Meu quarto, algo como um cômodo de 3,5m x 3,5m, já era tomado de livros. As estantes com as obras dos escritores favoritos de meu pai ficavam lá, então mentalmente era como se estivéssemos deitados na mesma biblioteca que iniciamos o passeio, com a singela diferença de que minha cama era muito mais macia que o chão. Juro que entendo Matilde Campilho. A poesia pode não salvar o mundo, tampouco salvar vidas como um médico faz, mas salva um minuto. E isso realmente já é suficiente.