Num desses dias passados, andava à tarde por Curitiba. Era um sábado, sol e calor atípicos para um outono. Justamente por isso havia mais razões para sorrir do que para chorar. Peguei o ônibus em frente ao Mercado Municipal e, ao entrar pela porta, me direcionei para o espaço compreendido pelo primeiro eixo do biarticulado.
A linha, que é intermunicipal, costuma vir cheia, ao menos até a estação tubo do shopping, em frente à Praça Eufrázio Correa. Por não mais que dois pontos, eu, e todos no ônibus, fomos obrigados a ouvir, juntamente com quem a música interessava, um funk em alto e bom som. Independentemente da existência ou não de legislação a respeito (e há), a altura do som me incomodava.
Senti internamente naquele tempo-espaço uma ira profunda, aquela de gosto acre, que corrói a alma e perfura nossa identidade. Como dificilmente consigo não refletir sobre o que penso, digo e faço, me peguei o restante do final de semana remoendo aquele instante. Por que aquele sentimento havia tomado conta de mim?
Quando tinha não mais que quatro anos, fui convidado, juntamente com minha irmã do meio, pelo grupo Luz para o Caminho, no qual meu pai trabalhava, para filmar uma espécie de teaser, comercial, não me lembro ao certo. Fomos até o Bosque dos Italianos, em Campinas, para fazer a tal filmagem.
Nos colocaram no balanço e lá estando a orientação era para que brincássemos. Transcorridos alguns minutos, vemos passar por nós uma criança um pouco acima do peso, ao que minha irmã cita “Veja só, que criança gorda”. Quase de bate pronto, naquela naturalidade típica das crianças, respondi: “Ele não é gordo, seus olhos que são pequenos”.
Aquele pequeno punhado de palavras agiu em mim, durante toda vida, de uma forma que não saberia explicar. Mas hoje, quase 30 anos depois, ela tornou a bater em minha porta. Acontece que, dessa vez, eram direcionadas a mim.
Transcorridos alguns minutos, vemos passar por nós uma criança um pouco acima do peso, ao que minha irmã cita ‘Veja só, que criança gorda’. Quase de bate pronto, naquela naturalidade típica das crianças, respondi ‘Ele não é gordo, seus olhos que são pequenos’.
Exercitamos cotidianamente a não existência do próximo. Deslegitimamos, da forma que for possível, a humanidade do nosso semelhante, simplesmente por não sermos capazes de enxergar naqueles olhos a mesma vida que bate dentro de nós.
Era esta então a razão do que borbulhava em mim. Eu não consegui ali compreender que, na verdade, não era a música ou sua altura que me incomodavam. Muito menos a rebeldia da atitude dos garotos, com suas caras fechadas e sisudas, como que também tomadas de ira pungente.
Prefiro hoje entender que aquela atitude era um grito de resistência à marginalização deles perante a sociedade. A mesma que eu, inconscientemente, praticava contra eles. A mesma que diariamente homossexuais, negros, pobres e mulheres sentem na carne.
Provavelmente eu nunca encontre novamente aqueles três garotos para pedir-lhes desculpas, mesmo que eles não tivessem a mínima ideia do motivo. Mas aqui, diante de uma página em branco, admito vergonhosamente minhas limitações.
No fundo, o ódio ao outro é um atestado da mais pura incapacidade de relacionamento em sociedade. É a essência de um mal que diz mais sobre quem não sou do que quem posso ser. Afinal, alimentar o ódio visceral é como tomar veneno esperando que o outro morra.