O que me falta em sintonia fina na visão, sobra quando o assunto é minha audição. Sem brincadeira, ouço tão bem que já me dei conta que, por vezes, ouço até o que não foi dito. Vou logo confessando que isto não tem nenhuma vantagem prática. Não faz com que eu saiba os números da Mega, não muda o esquema tático da Seleção Brasileira e nem convence a Dilma de que a volta da CPMF é uma tremenda furada.
Entretanto, ouvir a conversa dos outros quando ando pela rua, estou sentado em um restaurante, ou no ônibus no trajeto para casa é, para ficar delicado, interessante. Esse “voyeurismo auricular” talvez me garantisse um bom livro, foi o que pensei inúmeras vezes. Na falta de tempo para escrever um capa dura, sobrou para a crônica da semana.
Talvez as pessoas se sentissem ofendidas ao saber que as escuto falando ao celular. Em minha defesa, não há muito o que fazer quando você sobe no vermelhão curitibano e, ao seu lado, senta-se uma pessoa carregando próximo ao ouvido um telefone celular.
Notei ao longo dos anos que as conversas mudam conforme o ambiente. No ônibus, geralmente desenrolam-se casos de amor. E aí você ouve de tudo, parece até núcleo romântico de radionovela. Na rua, em dias de semana, são mais comuns as brigas de namorados, enquanto aos fins de semana, desenrolam-se os convites para as festas que acontecerão à noite, exceto aos domingos, reservados para as ligações para parentes distantes. Restaurantes costumam ser ambientes propícios às conversas monótonas: trabalho, trabalho, trabalho. Aliás, chego a crer que o que menos se faz em um restaurante seja comer.
Como quase nunca ouço o outro lado da chamada (excetuando-se quando é um Samsung, nunca entendi o porquê), isso me permite exercitar meu lado Nelson Rodrigues.
Como quase nunca ouço o outro lado da chamada (excetuando-se quando é um Samsung, nunca entendi o porquê), isso me permite exercitar meu lado Nelson Rodrigues. Parte disso se deve ao ócio gerado por 40 minutos ou mais dentro do transporte público, a outra parte se deve ao fato da ficção às vezes ser melhor que a vida real e, bem, eu sempre amei os textos que Nelson escreveu na década de 1950 para sua coluna na Última Hora. Justamente por isso, ouvi muitos casos sobre adultérios, pecados, desejos, moral (ou, no caso, a falta dela) e tantos outros que dariam muitas capas da Contigo!. Ok, talvez tenha exagerado ao comparar com uma crônica do Nelson.
De forma geral, acabo me interessando bastante pelos diálogos em que meus personagens da vida real tecem suas opiniões sobre a vida, principalmente sobre a dos outros. Às vezes, ao ouvir esses papos, a vida até parece fácil. Mas a trama sofre uma reviravolta quando o protagonista insiste em gritar para o Centenário/Campo Comprido todo ouvir que “A vida não é a porra do seu Toddynho gelado, não! Moleque!”.
É, meus personagens nunca me decepcionam.