Em frente de casa passa uma linha de trem. Todos os dias da semana, todos mesmo, o trem passa pela primeira vez às 7 horas da manhã. Obviamente, como tudo no Brasil, o trem não é muito pontual. A única certeza é que ele irá passar, e pode ser às 7 ou às 10.
Com o passar dos dias, ao contrário do que reza a lenda, nós não nos acostumamos com o trem e as apitadas cruéis de seu maquinista, um aviso ao motoristas e pedestres que possam estar passando pelos cruzamentos entre a linha e o asfalto e a calçada – e só na frente de casa eles são três. Nós aceitamos que ele está lá, firme, forte, quente, cheio de vagões e vermelho como a cor da empresa dona deles. Alguns dos vagões são grafitados, verdadeiras obras gráficas. Outros carregam pichações, frases de ordem, nomes de guerra e algumas informações que, admito, não sou capaz de decifrar.
Com o passar dos dias, ao contrário do que reza a lenda, nós não nos acostumamos com o trem e as apitadas cruéis de seu maquinista. Nós aceitamos que ele está lá, firme, forte, quente, cheio de vagões e vermelho como a cor da empresa dona deles.
A linha é controversa. Ao mesmo tempo que carrega materiais e suprimentos indispensáveis a muitas indústrias – e ela mesma ser responsável pela geração de inúmeros empregos –, ela gera um tremendo incômodo nos moradores do entorno. Alguns metros à frente, as residências dividem muros com a linha, como se criassem um corredor residencial. A distância é tão pequena que da cabine do maquinista é possível ver os cômodos das residências.
Em uma de nossas primeiras noites na nova casa, veio à mente o poema de Manoel Bandeira, “Trem de Ferro”. Como ainda não havia cortina que impedisse, ou disfarçasse, a luz da lua durante à noite e a do sol ao amanhecer, o poema fazia as vezes de carneirinhos. “Café com pão, café com pão, café com pão”. O relógio corria, café com pão, o cachorro roncava entre nós, café com pão, o cheiro da casa nova ainda era estranho, café com pão, o trabalho, café com pão, textos para editar, café com pão, para serem escritos, café com pão, as contas, café com pão, a vida, café com pão, a morte, café com pão. O trem apitou às 2 da madrugada. “Virgem Maria, que foi isso maquinista?”. É, o trem serve, também, pra gente não esquecer que estamos vivos.