Era uma noite de agosto, fria como quase todas as noites do inverno curitibano, ainda mais naquele 2013, época em que, após 38 anos, a cidade tornou a ver gelo.
Na minha frente enxergava uma gaúcha, mas não a companheira do dia a dia. Esta era outra. Jornalista (tal qual minha esposa) e escritora, a mulher que estava diante de mim parecia na verdade estar com o pensamento um pouco mais distante.
Após versar durante algumas horas em uma instituição de ensino, o final de sua noite seria acompanhado de mim, minha esposa e uma amiga. Naquele momento, a maior das dúvidas que me acometia era a de saber o que falar. Estava diante de uma mulher acostumada às perguntas e eu, naquele momento, trocava de lugar com ela, nem que fosse de maneira metafórica.
Ao chegarmos ao bar do hotel no qual ela se hospedava – que, por sinal abrira as portas apenas a nós quatro – senti que de certa forma precisava me despir de meus medos e encarar aquela oportunidade para fazer algo mais de minha vida. Só não havia decifrado ainda o quê.
Embuído de minha única certeza, chamei o garçom e lhe solicitei: seu melhor uísque, muito gelo e dois dedos de água. Pronto, estava armado e munido do bom e velho cachorro engarrafado. Eis que algo – como nos filmes da Pixar, Disney ou outro estúdio da indústria da animação – purpurinou-se diante de meus olhos.
Ali estava eu, diante da maior descoberta dos meus quase trinta anos: não havia feito nada da minha vida. Clichês à parte, aquela constatação caiu como um soco no estômago. O ar que por segundos me faltou parecia sorrateiramente me dizer: muda. Mas mudar o quê?
Ali estava eu, diante da maior descoberta dos meus quase trinta anos: não havia feito nada da minha vida.
Retomando o diálogo, comecei a enxergar em Eliane um pouco de mim ou, na forma mais correta, um pouco dela em meus olhos. Precisava de alguma forma mudar meu rumo, encontrar o prumo, enfim, precisava mudar. E claro, ainda não havia descoberto o quê.
Ao final da batida do uísque em meu organismo, senti como se tivesse encontrado a resposta que me corroía por toda noite. Num rápido jogo de cena, cruzei todos os dados facilmente acessíveis em minha memória. Passei então a rir. Claro que internamente, afinal, não poderia parecer bobo diante de três grandes mulheres que comigo dividiam aquela mesa de bar.
Se me pergunta o leitor sobre minha realização, pois bem, lhe digo. Boa parte de minha motivação em vida se deu em função das perguntas. Não as bobas que apenas atestam nossa insegurança, como “você me ama”, “você está feliz”, “você me quer”, que em algum momento de nossas vidas só terão como resposta um único, sonoro e original “não”.
As perguntas que moviam e ditavam meus passos tinham caráter muito mais analítico. Não que houvesse de minha parte o desinteresse pelas respostas, mas acreditava que nas indagações caminharia sempre em frente, ou no máximo dando um passo atrás e mais dois adiante.
Perguntar me permitiria escutar e, por ironia do destino ou alegria do acaso, tinha ouvido da mesma Eliane Brum que na minha frente sentava – educadamente exausta e, ainda assim, exercitando seu dom da escuta – que neste verbo estava o sujeito que procurava.
Ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, ao escutar eu legitimava o outro. Escutando eu envolveria outras percepções. Fossem elas minhas ou do outro, eu agora era capaz de compreender o reflexo que por vezes se escondia no breu, entre a frustração e a angústia.
O uísque acabou, o papo encerrou, as horas passaram. Eliane, cansada e com sono, se recolheu em sua habitação. Não tornei a vê-la, ao menos não na urgência humana do tato.
A partir deste encontro passei a fazer perguntas querendo as respostas, mas movido pelas indagações. Arrisquei e fiz meu salto mais alto, crente que, no provável joelho ralado, encontraria mais perguntas, mais respostas, mais histórias e mais vida.
Já não havia razões para me manter no calabouço, onde as certezas da inflação, dos juros e das contas no final do mês encobriam o que eu deveria ser. Ou achava que deveria. E neste mundo, onde impera a opinião não formada, meu bem, achar já era mais, muito mais do que eu alguma vez tivera.