“Imaginem o Henrique bêbado”, de vez em quando alguém solta. E, inevitavelmente, irrompe estrondosa gargalhada, porque é mesmo coisa muito engraçada imaginar o Henrique – o Henrique! – bêbado. Um sujeito tão comedido, tão certinho, como é que se comportaria diante dos efeitos do álcool? É o que todos pagariam para ver, mas a verdade é que não verão nem pagando. Primeiro que o Henrique não bebe. O Henrique tem muitos defeitos, é verdade, um deles o de falar de si mesmo na terceira pessoa, mas beber, beber mesmo, ele não bebe. Já bebeu, duas ou três vezes, e não conseguiu identificar em que a cerveja seria superior a, sei lá, o guaraná. Não bebe, sobretudo, porque não gosta, mas também por recomendação expressa do seu gastroenterologista. O Henrique sofre de refluxo, esse fresco. Segundo que, mesmo que bebesse, seria bem pouco provável que chegasse ao ponto de ficar bêbado. Está para nascer um regime mais totalitário do que aquele que o Henrique inflige a si mesmo. Disciplina ali é mato. É apenas nisso que o Henrique deixa trair a sua origem de alemão do Deutschland.
Acontece que o Henrique, essa criatura abstêmia que ora analisamos, nasceu em uma daquelas cidades alemãs do sul do Brasil, o que, em outras palavras, significa uma cidade em que se bebe bastante. E não apenas isso: a cidade em que o Henrique nasceu tem a fama de ser a segunda cidade em que mais se bebe no mundo – as más línguas dizem que só não é a primeira por causa dos crentes. Onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas, ali estará, tão inequívoca como a morte, uma garrafa de cerveja. A morte, aliás, não deixa de ser também uma oportunidade para beber, pois os familiares do morto costumam pagar uma rodada para aqueles que cantaram, tocaram, fizeram discurso ou algum tipo de homenagem ao falecido.
“O Henrique tem muitos defeitos, é verdade, um deles o de falar de si mesmo na terceira pessoa, mas beber, beber mesmo, ele não bebe”.
Como foi que o Henrique conseguiu ficar sóbrio em um ambiente como esse, é coisa que intriga e ainda será objeto de estudo. Certamente não foi por falta de oportunidade e convite. Houve mesmo ocasiões em que o somaram na hora de contar quantos copos de cerveja era preciso trazer. A tudo o nosso herói resistiu, como continua resistindo até hoje, pois não é porque mudou de cidade que deixaram de lhe tentar com os estados alterados de consciência.
Com postura tão impopular, o Henrique costuma quebrar a harmonia dos encontros sociais, pois, além de tudo, ele também não bebe mais refrigerante, obrigando os anfitriões a quebrar a cabeça atrás de algum líquido que satisfaça o paladar da madame – jamais cogitam a água, pois, mesmo nesses tempos de crise hídrica, julgam uma ofensa que alguém, na casa deles, seja obrigado a tomar uma coisa que pode encontrar em qualquer torneira. E, como é possível esperar qualquer coisa de um sujeito que não bebe, não é raro que, em seguida, também lhe façam perguntas das mais disparatadas, do tipo “Mas carne você come, não é?”.
Não bebe, pois, o Henrique, como também não fuma, e a única coisa prejudicial à saúde a que se submete com frequência é mesmo escrever. Um Henrique bêbado não seria muito diferente de um Henrique que escreve – é precisamente isso que ele faz para se soltar.