Hoje não devia ter crônica, porque eu, honestamente, não me sinto inclinado a escrever, escrever o quê, para quem, a troco de quê? Eu devia promover consertos na casa, arrumar a minha estante, procurar um emprego, tornar-me um homem valoroso. Eu devia estar estudando para passar em concurso público, qualquer concurso, em qualquer área, em qualquer canto do país, para que nunca mais ficasse desempregado, para que o governo se visse obrigado a me sustentar pelo resto da vida, e assim quem sabe eu dormisse melhor, sem precisar da mirtazapina, a minha querida Mirta, a minha fiel companheira na cama.
Mas qual, eu, trabalhando no governo, eu no meio dessa engrenagem sustentada pelo poder, pela força, pelo medo e pela violência! Ando falando muito mal do Estado por aí, até perguntaram se eu estava lendo o Hobbes, mas não, é só o Tolstoi mesmo. Ando tendo muitas ideias sobre Deus e o mundo, mas, poxa vida, nenhuma ideia que encha a barriga. Tudo leva a crer que eu serei um dos mais cultos panfleteiros e empacotadores de mercado.
Ah, não era esse o rumo que eu queria dar ao meu texto, já que é preciso mesmo fazer um texto. Eu devia fazer uma crônica de mulher perdida, uma crônica sobre aquela moça que insiste em aparecer nos meus sonhos, e é sempre a mesma e única vez, e é sempre uma segunda chance, é sempre o momento em que as coisas ainda não estão perdidas, irremediavelmente perdidas. Só que eu já tentei fazer essa crônica, várias vezes, e nunca ficou boa, e nunca traduziu o sabor de acordar de um sonho assim.
Tenho a fazer ainda uma crônica de pássaros, tema nada original, logo se vê, é que tem umas coisinhas que eu queria falar sobre pássaros, mas não hoje, hoje eu iria estragar todo tema que me passasse pelas mãos. Hoje o meu desejo é fazer uma crônica tão inconsolável como as do Carlinhos Oliveira. E a cada hora o meu celular vibra, e com ele o meu coração, na expectativa de uma notícia boa, agora sim, Henrique, as suas preces foram atendidas, você finalmente irá se encontrar na vida, rapaz! Ainda há pouco foi uma mensagem em tcheco. Eu conheço alguns tchecos, e os tchecos sempre querem saber quando é que eu vou para lá, e eu respondo um dia, um dia, um dia… – ah, meu Deus, serão os sonhos uma mentira repetida?
Hoje o meu desejo é fazer uma crônica tão inconsolável como as do Carlinhos Oliveira.
Eu devia dar uma volta de bicicleta, em vez de ficar a toda hora atacando a cozinha, enchendo-me de doces e de culpa, olha as cáries, olha a glicose. Ando comendo como um condenado, acho que nunca pesei tanto como hoje – e continuo magro! Como e vou para frente do PC, coloco para tocar um CD dos Engenheiros do Hawaii, há anos que não ouvia Engenheiros do Hawaii, e de repente comecei a ouvir todos os discos de novo, até disseram que eu estou “total revival”, e deve ser mesmo, estou com a cabeça em 2004, por que diabos 2004 tinha que acabar?
Não sei, não sei de muita coisa, mas suspeito que hoje seria um bom dia para publicar um texto chamado “Preguiça” e deixar o espaço do texto em branco, o leitor esperando carregar alguma coisa, esperando, esperando, até que se dá conta da piada, se é que é piada. Isso já foi feito pelo Quintana e o jornal censurou o espaço vazio.
Ah, hoje deviam colocar um texto do Quintana no meu lugar.