Guardei, para a posteridade, a receita médica que me sugere o uso contínuo de medicamento controlado. Um dia, os meus netos descobrirão esse papel e, com a insensibilidade típica da idade, dirão que “o vovô era meio lelé da cuca”. Não estarão tão longe da verdade, mas tenho em meu favor o fato de jamais ter comprado o medicamento, o que, por si só, já é uma prova de certa sanidade. E não comprei simplesmente porque não precisava dele. Era, em verdade, um antidepressivo, coisa que não me servia, pois nunca tive depressão. Acontece que, hoje em dia, até os dermatologistas estão receitando antidepressivos. Guardei, pois, a tal receita.
É possível que, há coisa de um século, não me dessem receita alguma, mas me mandassem direto para algum lugar isolado. Tenho mesmo uma certa tendência genética para a loucura, pois um dos meus bisavôs morreu em um hospício de Curitiba. Nunca soube exatamente qual era o problema dele – os registros falam apenas em “debilidade mental”, o que inclui muita coisa, desde acreditar-se Napoleão até, sei lá, discutir em rede social. Não é improvável que tivesse apenas alguns desses transtornos que hoje são tratados a base de comprimidos.
Foi, talvez, motivado pela curiosidade de saber como vivia este bisavô que me animei a visitar um hospital psiquiátrico. Devo dizer que não sabia muito bem o que esperar. Logo à entrada, fui alertado de que os internos iriam tentar me cumprimentar, coisa que, em Curitiba, é realmente um sinal de que a pessoa não está em seu juízo perfeito. A recomendação era não dar atenção, exatamente como as enfermeiras fazem. Viriam em minha direção maníacos, depressivos, esquizofrênicos, psicóticos, suicidas em potencial e, imaginem só, obesos.
“Fui alertado de que os internos iriam tentar me cumprimentar, coisa que, em Curitiba, é realmente um sinal de que a pessoa não está em seu juízo perfeito.”
De fato, todas essas pessoas caminhavam pelo pátio principal e algumas puxavam assunto. “Hoje à noite eu volto para casa”, anunciou um interno – ao que a enfermeira retrucou que era o primeiro dia dele. Houve quem nos convidasse para visitar a casa de suas famílias. Alguns murmuravam coisas que ninguém entendia, mas descobri que o ponto alto daquele lugar são as gincanas e festas de aniversário. Nesses dias, todos se sentem livres para dançar à vontade, sem se preocupar com o que os outros irão pensar. Só que já não estão mais fazendo tantas festas como antigamente – foi o que me segredou um dos internos, de nariz escorrendo.
Para passar o tempo, eles também podem ver televisão, mas não em qualquer horário: há um aviso de que é proibido assistir durante o almoço e após a novela das oito. “Televisão é maquina de fazer doido”, já dizia a Tia Zulmira, do Stanislaw Ponte Preta – sobretudo se pensarmos que é depois da novela das oito que começam certos reality shows. Assim se entretêm aqueles internos, em meio a uma ou outra visita familiar, certamente raras.
Pensei no meu bisavô, pensei nessas pessoas que tiveram a inconveniência de enlouquecer – se é que realmente enlouqueceram. Pensei que a função daquele lugar é, sobretudo, evitar que demos de cara com elas na rua. E ainda pensava nessas coisas, tristemente, quando consegui sair de lá – porque, afinal, contra todas as expectativas, eu não fui barrado na saída.